12/19/2006
Have Yourself A Merry Little Christmas*
Pablo Picasso - Le Visage de la Paix
Paz (seja qual for o seu rosto) na terra, aos Homens de boa vontade. E aos outros também.
Bom Natal!
* Respectivamente:
Jeanie Bryson (5:25) in 'Christmas Break: Relaxing Jazz for the Holidays'
Ella Fitzgerald (2:56) in 'Have Yourself a Jazzy Little Christmas'
Lou Rawls (3:41) in 'Merry Christmas, Baby'
Diana Krall (4:20) in 'Christmas Songs'
Rosemary Clooney (3:55) in 'Have Yourself a Merry Little Christmas '
12/11/2006
Trista*
Maya Kulenovic - Death Mask
À morte pertencemos. Desde sempre. Somos todos da raça dos mortos, disse Ruy Belo.
Devíamos viver por camadas. É o que me dizes. Para escapar à morte. A essa morte que nos custa mais. A morte dos outros. A morte sem máscaras. Ou explicação. A morte crua. A profunda escuridão. Devíamos viver por camadas. Aqueles que se conhecessem, se falassem ou se amassem morreriam todos juntos. De uma vez só. Seria mais humana. Essa ausência do vazio que enche tudo quando nos morre alguém que amamos. Porque o que nos custa, o que nos entranha esta tristeza insustentável, não é pertencemos nós à morte. Mas é ficarmos vivos, carregando a morte dos outros.
* Tomasz Stanko Quartet (4:44) in 'Lontano'
12/06/2006
Heartland*
11/27/2006
Waiting For Eden*
11/23/2006
Find Me In Your Dreams*
11/16/2006
Vox Humana*
Mª Helena Vieira da Silva - Je Touche à l'Étendue
(...)Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi, -
Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito! (...)**
E é então. Que começamos. A ficar. Tranquilos. A ficar. Inquietos. A perceber. As contradições. A ficar. A perceber. A (não) querer saber. É para isso que serve a voz. O grito. E até. O infinito.
* Chris Potter (5:26) in 'Gratitude'
** José Régio - Extracto do Poema do Silêncio
11/13/2006
Mon Coeur est Rouge (a.k.a. Paint My Heart Red) *
Mark Rothko - White over Red
Não te servem estas mãos? O coração encontra-se na beleza das coisas. No mesmo lugar onde se perde. Nos laços que não quebramos. Nas cinzas que não espalhamos. Nas gavetas cheias de objectos cegos. Entre o esquecimento e a esperança. Tanto faz. A memória é noutro sítio qualquer. Não se toca com as mãos. Nos lugares da memória. A menos que as mãos sejam as mesmas. Que tocam o coração.
* Keith Jarrett (8:30) 'The Carnegie Hall Concert'
10/30/2006
The Mourning of a Star*
Gerhard Richter - Dark
Somos da espécie das estrelas. Cinco pontas. Habitualmente. Nenhuma por onde nos peguem. Afinal. Somos da espécie mesma desses elementos. Mortos. Emitimos brilho. Apenas. Após a invasão da profundíssima escuridão. Dói-nos a dor das estrelas. É a nossa. Dói-nos termos perdido a luz. Não termos tacteado a poeira. Não nos termos encontrado nos grandes buracos negros que trazemos (de) dentro. Não termos caminhado em constelações sentindo que aí (nos) pertencíamos. Termo-nos perdido nas sinuosas ruínas do que somos. Não nos termos reconhecido. Apesar dos milhares de anos luz a que nos vemos.
* Keith Jarrett (9:24) in 'The Mourning of a Star'
10/26/2006
Here's That Rainy Day*
Jon Schueler - Rain
Vem com a chuva um nome imperfeito. Perfeito se procuras aquela nota pequena. Quase inaudível. Aquele rumor pequeno que fazem as saias das mulheres, com o movimento. Perfeito se procuras aquela pequena linha. Quase invisível. Aquela pequena fronteira que separa um homem de outro homem, com a guerra. Perfeito nome que vem, imperfeito, com a chuva, se o que procuras é aquela palavra pequena. Quase inaudível. Aquelas letras que se juntam, para dar aos dias o teu sentido. Uma palavra útil. Um nome. Aquele que te abre. O único que reconheces. No fim. Um nome fácil de dizer. Um nome para a (nossa) morte. O (teu) nome. Que não sei.
* Martial Solal & Dave Douglas (3:18) in 'Rue de Seine'
10/24/2006
Bird Calls*
Joan Miró - Mujer, Pajaro y Estrella
Há demasiadas coisas que (se) explicam (com) um sorriso. Gostar de gaivotas. Ter as gaivotas rasantes às janelas. Mesmo as imaginárias. Ter o ouvido atento. À escuta. Do sorriso dos pássaros. Reconhecer as palavras-hélices que circulam entre nós. E que há palavras imensas que esperam por nós**. Há demasiadas coisas que só um sorriso pode explicar. O apelo dos pássaros. A abundante cor no que se sente. A cor que cria a luz. A cor que impele a rapariga que gosta de gaivotas ao dever falar. E a nós a ouvir. Atentamente.
* Charles Mingus (6:17) in 'Mingus Ah Um'
** Mário Cesariny - You are Welcome to Elsinore
10/18/2006
Speak Low*
Henri Matisse - La Nageuse dans l'Aquarium, quadro XII da série Jazz
Fala-me baixo. De dentro da caixa. No meio da água. Que o sangue mancha. Não te ouço. Fala-me. Mais. Baixo. Mas não deixes de falar. Como se eu te pudesse ouvir. Dentro do sangue. Que a água mancha. Sou um mergulhador solitário. Como todos. As profundezas do sangue deixam-nos sós. Tão sós como quando estamos fora da água. Fala-me baixo. E devagar. Como se pudesses estancar a água. Como se pudesses transferir todo o sangue que foi gasto a viver muito devagar. Com muita pressa. Fala-me baixo. Enquanto eu mergulho mais. Enquanto dou umas voltas mais dentro da caixa. Como se fosse à vida. Enquanto subo para respirar. Fora do sangue. Enquanto abro a boca, para te ouvir. Falar(me) baixo. Antes de regressar à água que o sangue mancha. Dentro da caixa. Que. Às vezes. Se parece com a vida.
* Chano Domínguez (6:18) in 'Con Alma'
10/13/2006
My Song*
W. Kandinsky - Contrasting Sounds
Podia ter apenas uma canção. Uma que soubesse. Cantar. Podia ter apenas uma vida. Uma que soubesse. Contar. Podia ter apenas um amor. Um que soubesse. Amar. Podia ter apenas um nome. Com que me pudessem. Chamar. Podia ter apenas um desejo. Um que me fizesse. Correr. Podia ser apenas. Eu. Dentro de mim.
* Pat Metheny (4:22) in 'One Quiet Night'
10/04/2006
Evidence*
Jackson Pollock - Convergence
O resto é sempre muito. Demasiado. Parecido. Quase sempre. E chorar. Limpa. Ou. Apenas. Suja mais. Pensamo-nos diferentes. Demasiado. Mas pouco há que nos distinga. O resto. É mesmo. O mesmo. Demasiado igual. Até o choro que nos limpa. Até o choro que nos suja. Aquilo que separa as pessoas é. Exactamente. O que as torna iguais. O que nos limpa. O que nos suja. Por vezes é. Exactamente. O mesmo. São as grandes crateras. As quedas dos pequenos meteoritos. Os movimentos. Tão pequenos. Da terra. São os desertos que nos crescem. Dentro. Esses grandes vazios. Impossíveis de cruzar.
* Thelonious Monk Quartet & John Coltrane (4:41) in 'Thelonious Monk Quartet with John Coltrane at Carnegie Hall'
10/01/2006
The Falling Rains Of Life*
Paula Rego - sem título, da série sobre o aborto
Paula Rego - triptico sem título, da série sobre o aborto
É capaz que ainda alguém acredite que a interrupção voluntária da gravidez, porque é voluntária, alguma vez foi feita com vontade por alguma mulher.
É capaz que ainda alguém acredite que abortar é um acto irreflectido e fácil, para quem toma a decisão de o fazer.
É capaz que ainda alguém acredite que o direito a uma vida sem condições se deve sobrepôr ao direito a uma vida com dignidade.
É capaz que ainda alguém acredite que o corpo de uma mulher não é propriedade sua.
É capaz que ainda alguém acredite que os milhares de mulheres que, todos os anos, abortam clandestinamente em Portugal, deviam ser condenadas.
É capaz que ainda alguém acredite que os milhares de mulheres que, todos os anos, morrem em consequência de um aborto clandestino, não mereciam outra sorte.
É capaz.
É capaz que, depois do próximo dia 19 de Outubro, a hipocrisia se mantenha e continue, como quase tudo o resto, a envergonhar-me de ser portuguesa.
É capaz.
*Marty Ehrlich (5:15) in 'Song'
9/26/2006
It's All In The Game*
Grafitti numa parede de Portalegre, Agosto de 2006
Diz-me o Carlos que eu sou capaz de dizer seis (mais seis?) coisas sobre mim. Duvido que saiba seis (mais seis?) coisas sobre mim. Ou mesmo que essas seis (mais seis?) coisas sobre mim sejam verdade. Eu sou uma mentira que fala sempre verdade (era Cocteau quem dizia isto?). As verdades são sempre duras...it's all in the game:
1. Gosto de fumar. Muito. Talvez seja certo que morrerei de cancro. E eu tenho medo de morrer. Mas acendo um cigarro e mesmo as coisas que sei de mim me parecem mais suportáveis e por isso sigo Fumando*
* Chano Domínguez (4:03) in 'Iman'
2. Às vezes apaixono-me violentamente pelas pessoas, ainda que, em geral, não goste muito delas. É um pouco triste esta coisa que sei de mim, mas sim I Fall In Love Too Easily (I Fall in Love Too Fast)*
* Chet Baker (3:18) in 'My Funny Valentine'
3. Diz Enrique Vila-Matas quando viajas só, o estranho és sempre tu. Ainda assim estranhamente, gosto muito de viajar. Sózinha. Ou seja, Travelin' All Alone*
* Billie Holiday (2:15) in 'Lady Day'
4. Eu tenho a mania que sou grande, mas na verdade sou muito pequena. E com tendência para a melancolia. Basicamente uma Little Girl Blue*
* Diana Krall (5:38) in 'From This Moment On'
ou (como sempre)
* em versão Nina Simone (4:12 ) in 'Little Girl Blue'
5. Embora às vezes diga nunca mais, eu olho para as coisas a seguir como se fosse sempre a primeira vez e sim, acredito sempre que This Could Be The Start Of Something*
*Oscar Peterson (4:43) in 'Night Train'
6. Eu tenho medo. Mas digo sempre que não. Medo de morrer. Por exemplo. E então eu canto. Canto só para saber que ainda estou viva... ou numa muito melhor versão I Sing Just to Know I Am Alive*
* Nina Simone (1:12 ) in 'My Baby Just Cares for Me'
Em suma, sei seis (mais seis) coisas sobre mim. Sei por exemplo (embora não possa por aqui a música) que Mon coeur est rouge (Keith Jarrett, digamos... em Nápoles, em 1996). E acho que sabendo isso nem seria preciso saber mais nada. Mas (mais) seis coisas são sempre um bom pretexto para ouvir (mais) música.
E agora BlahBlah e tu? TalvezMeEscrevas seis coisas sobre ti?
E agora Luís e tu? Seis coisas da tua Natureza do Mal?
* Keith Jarrett, Jack DeJohnette, Gary Peacock (6:47 ) in 'The-Out-of-Towners
9/23/2006
Fingerprints*
Joan Miró - Personnage Blessé
Atravessei a madrugada. Os olhos grandes. A água. Os dedos. Atravessei a madrugada como quem grita, sendo mudo. A noite imensa. A escuridão de quem é cego. E depois a luz. O dia. Então dormi como os animais dormem. De um sono cego. De um sono mudo. E acordei como acordam os animais esquecidos. Sem olhos. E sem boca. Inexistente. A dor como uma faca. O sangue. Um rio. E odiei como odeiam os animais feridos. Com a força cega. Com o sangue quente. Com os dentes todos. Com as patas levantadas. E odiei como os animais odeiam. E gritei como os mudos gritam. Girassol. Vento. Estrela. Sangue. Noite. Mãos. E nunca mais vi o mundo. Pela primeira vez. E nunca mais ouvi a música. Pela primeira vez. E nunca mais toquei. Pela primeira vez. E nunca mais acabo de morrer.
* Chick Corea (5:20) in 'Past, Present & Futures'
9/21/2006
Once I Loved*
Georgio De Chirico - La nostalgia dell'infinito
A única evidência, além da música, é que o amor é a coisa mais triste, quando se desfaz**. Sei quase nada. Mas sei. Dessa infinita tristeza. Dessa nostalgia infinita. Sermos pequenos como as nossas sombras. E desejarmos abismos. Sei dos abismos e das alturas. E das vertigens e das quedas. Sei até das mentiras. E das verdades mais duras. Sei quase nada. Apenas sei (porque me ensinaram) que pensar é estar doente. Dos sentidos. Mas pior. A única evidência, além da música, são as palavras apagadas uma a uma. Sei da nostalgia. E da inquietude. E da esperança. Sei do infinito das paixões violentas. E do instante do amor em paz.
* Shirley Horn (6:50) in 'Close Enough For Love'
** Tom Jobim e Vínicius de Moraes O Amor em Paz, de que a música que toca é uma versão.
9/18/2006
The Wind*
Jackson Pollock - Autumn Rhythm
Só isto. Por uma vez. Só isto. Ouvir o vento. E estar certa. Não sei que coisas transporta o vento. Mas penso que música. Definitivamente música. Mas parece que também um coração partido. Daquele exacto modo em que as flores se partem, depois de quebradas por um excesso de água. Ou uma extrema ausência. Não sei que coisas traz o vento. Definitivamente a música. Incertamente uma flor partida. Um coração quebrado por uma extrema ausência. De si mesmo. O vento traz. Talvez. A inconstância dos dias em que temos que ser. Mais. Para além do vento. Em que temos que ser. A flor partida. O coração quebrado. A música que estranhamente se vai esvaindo. Só isto. Por uma vez. Só isto. Ouvir o vento. E estar certa. Que as flores se partem. E. As folhas dançam no Outono exactamente ao mesmo ritmo que os corações quebrados batem. Ouvir o vento e estar certa. De que sou daqui. E as pessoas daqui... sabem? As pessoas daqui não são iguais às outras. São estranhas pessoas. As que ouvem o vento. E únicas. De certo modo únicas. Como é único cada movimento. Do vento.
* Quoyle (4:03 ) Round About Midnight
9/14/2006
Inquietude*
Anselm Kiefer - Cette obscure clarté qui tombe des étoiles
Sabemos dos truques das estrelas. Carregamo-los dentro. Como intermitentes brilhos. De mágoa. E felicidade. Intermitentes. Sabemos que a luz das estrelas pode ser obscura. E que é por baixo da luz que, tantas vezes, encontramos os lugares da mais profunda escuridão. Esses lugares de tão intensa claridade. Que nos fazem fechar os olhos e querer. Desaparecer. Deixar de ser. Deixar de sentir. Ficar como antes. Com uma claridade vulgar. Uma vulgar escuridão. Não ter. Não ver. Não perceber. Sabemos. Dos truques das estrelas. Dos seus intermitentes brilhos. Da sua instável condição. Morrer primeiro para que tudo possa ser claro. Dessa inquietude profunda. De haver. Para além de um escuro céu sereno. O brilho.
* Bernardo Sassetti (3:54) in 'Indigo' - Disco 1
9/11/2006
Over the Rainbow*
9/06/2006
Solitude*
Anselm Kiefer - Innenraum (Interior)
Um quarto. Vazio. Eu. Encontrei a minha casa. Longe demais. Longe. Haverá sempre música bastante. Não sei que histórias conte. A solidão levar-nos-á para sempre. Aos lugares que conhecemos. Já. Um quarto. Vazio. Na minha longínqua casa. Agora encontrada. Sobre o vazio. Dentro. Haverá sempre música. E uma voz. Longe. A minha casa.
*Abdullah Ibrahim (0:16) in 'African Magic'
9/01/2006
Misty*
Gustav Klimt - The Kiss
O desejo de uma boca não é grave. Mas é aguda esta pontada de espanto com que te vejo advinhar-me os passos. Os passos interiores. À tua volta. Vou fumar. Vou fumar, para que me passe esta grave vontade de que continues advinhando os meus lábios. Imaginando com os dedos a forma como te respondem quando perguntas se acredito que sentes exactamente o que eu penso. O desejo de uma boca não é. Grave. Mas eu sinto uma dor. Aguda. Pelas tuas mãos. Ausentes.
*Sarah Vaughan and Quincy Jones (2:59) in 'Misty'
8/10/2006
Eu sei que vou te amar*
Juan Miró - Cifras y constelaciones en amor con una mujer
Ho incontrato un pianista che suona molto bene ed a cui piacciono le stelle...
..por isso roubei-lhe esta música. Que ele parece tocar apenas com o céu cheio de estrelas por companhia.
Grazie per tutta la tua musica, F.
*Quoyle (6:06) Round About MidnightEu sei que vou te amar
Por toda a minha vida eu vou te amar
A cada despedida eu vou te amar
Desesperadamente eu sei que vou te amar
E cada verso meu será
Pra te dizer que eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida
Eu sei que vou chorar
A cada ausência tua eu vou chorar
Mas cada volta tua há de apagar
O que essa tua ausência me causou
Eu sei que vou sofrer
A eterna desventura de viver
À espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida
Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida eu vou te amar
A cada despedida eu vou te amar
Desesperadamente eu sei que vou te amar
E cada verso meu será
Pra te dizer que eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida
Eu sei que vou chorar
A cada ausência tua eu vou chorar
Mas cada volta tua há de apagar
O que essa tua ausência me causou
Eu sei que vou sofrer
A eterna desventura de viver
À espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida
(Vinicius de Moraes/Tom Jobim)
8/07/2006
Saudades*
Jackson Pollock - The Key
Saudades. Muitas. E só de ti. Mas quem és tu? Serás aquele que primeiro amei. Ou o outro, que primeiro me amou? Ou aquele com quem vivi. Ou aquele que viveu comigo? Serás quem amo ainda. Ou quem já abandonei há muitas horas? Serás quem me ateia os incêndios nocturnos. Ou aquele que os apaga em gestos suaves? Serás aquele que expulsei da minha casa. Ou quem a mim me expulsou? Serás quem me ensinou a ler um corpo. Ou aquele que aprendeu comigo o alfabeto da lingua vagarosa sobre a pele? Serás o que matou ou quem matei? Quem és tu, de quem sinto estas saudades muitas? Tantas como quem deixou um mundo de coisas abertas na vida e perdeu as chaves no caminho.
*Trio Beyond: Jack DeJonhette, Larry Goldings; John Scofield (10:46) in 'Saudades'
7/31/2006
Light in the Morning (Many Thousand Gone)*
Salvador Dalí - Face of the War
Posso chamar-me, hoje, Hassan, ter oito anos e estar morto. Amanhã. Ou mesmo agora. Não ver já a luz da manhã. Amanhã. Ouvir, hoje, apenas os gemidos dos que morrem ao meu lado, debaixo das pedras. Posso hoje chamar-me Hassan e ser apenas uma criança. Estar morto. Agora mesmo. Ou amanhã. Quem se importa que eu tenha oito anos, me chame Hassan e amanhã já não tenha olhos para ver a luz da manhã?
* Marty Ehrlich Sextet (9:56) in 'News on the Rail '
7/20/2006
Strange Fruit*
Maya Kulenovic - Great War**
«Esvaziámos os lugares da matança, retirando-lhes o peso dos nossos mortos»
E os nossos mortos serão sempre mais pesados que os mortos dos outros. Por isso esvaziamos os lugares da guerra do seu peso. Em troca deixamos frutos estranhos, carne queimada e uma colheita de horrores. E não temos vergonha. Continuamos a não ter vergonha. O vento varre-a juntamente com os corpos de centenas de homens, mulheres e crianças que tiveram a pouca sorte de não serem 'nossos'.
* Billie Holiday (3:05) in 'Lady Sings the Blues: The Billie Holiday Story, Vol. 4'
«Southern trees bear a strange fruit,
Blood on the leaves and blood at the root,
Black body swinging in the Southern breeze,
Strange fruit hanging from the poplar trees.
Pastoral scene of the gallant South,
The bulging eyes and the twisted mouth,
Scent of magnolia sweet and fresh,
And the sudden smell of burning flesh!
Here is a fruit for the crows to pluck,
For the rain to gather, for the wind to suck,
For the sun to rot, for a tree to drop,
Here is a strange and bitter crop» **
**Outros contextos mas, no essencial, pouco diversos.
7/16/2006
Mediolistic*
Henri Matisse - Icarus - quadro VIII da série Jazz
Afinal. O que importa é a música. O jazz. O azul. Noite. As estrelas. Dançar, mesmo que se não saiba. E o coração no lugar certo. Não desfeito. Não nas mãos. Mas dentro do peito. O coração que é apenas o coração. Não uma qualquer metáfora para devaneios da cabeça. O coração que faz a sua parte. Bombear o sangue. Bater para viver o que importa. A música. O jazz. A noite. O azul. As estrelas. E as palavras.
*Al Cohn & Zoot Sims (3:29) in 'From A to Z'
7/11/2006
Feeling Good*
René Magritte - L'Art de Vivre
O sol na cabeça. Ter o sol. Na cabeça. Ou a cabeça no sol. De qualquer modo, viajar muito alto. Muito longe. Na cabeça. Com o sol. Sinto-me tão bem. Tão viva. Tão despojada das minhas costumeiras angústias que me apetece gostar do sol. Ter a cabeça no sol. Ou o sol na cabeça. Até queimar o passado todo. O passado que está morto. Que já passou. Que já não interessa. Só o sol. E a viagem. O momento da viagem. Ou cada momento da viagem. Muito alto. Muito longe. Interessa. Não o passado. Ou o futuro. Talvez nem o presente interesse. Apenas a sensação de estar viva. De escrever ao sol. Na cabeça.
* Nina Simone (2:54) in 'Feeling Good'
7/07/2006
Alegria Callada*
Sebastião Salgado - San Juan, 1979
Hoje tenho sete anos. Ainda sinto as mãos da minha mãe a entrançar os meus cabelos. Hoje tenho sete anos e borboletas na barriga. Borboletas iguais, nas cores, aos laços que a minha mãe me põe na ponta das tranças. Hoje tenho sete anos e tenho pressa. As mãos da minha mãe nos cabelos e pressa. De te encontrar sentado contra o tempo. No jardim em frente aos prédios. Na praceta da minha infância. Tenho sete anos e saio de casa a correr. Tenho sete anos e posso brincar na rua. Tenho sete anos e uma cara perfeita. Como os anjos. Tenho sete anos e a minha cara ainda não partiu numa direcção indistinta. Saio de casa a correr. Para o jardim em frente aos prédios. Páro. Com um pé atrás do outro. A sentir as asas das borboletas às voltas na barriga. Páro. Porque te vejo sentado no balouço, com o saco dos berlindes a cair-te da mão direita. Avanço um bocadinho. Avanço tudo, com a minha cara perfeita como a dos anjos. Tenho sete anos e tenho pressa. Pergunto-te - e as asas já não voam, golpeiam - queres brincar comigo? #
* Chano Domínguez (6:59) in 'Iman'
# texto publicado antes, sem banda sonora e com o título Asas e Golpes, no blog entretanto extinto - Pilar da Ponte de Tédio
6/29/2006
Anything Goes*
Juan Miró -Mujer soñando la evásion
Hoje este blog faz um ano. Este blog é sobretudo o jazz. É azul. Mas nem sempre é triste. Às vezes é. Como a vida e tudo mais. Está tudo azul. Ouve-se jazz. Um deus passeia-se comigo pela brisa das tardes**. E aqui dentro há uma espécie de calma reconciliação com tudo o que fui, sou, serei.
* Brad Mehldau Trio (7:07) in 'Anything Goes'
** Descaradamente baseada no título do livro de Mário de Carvalho - Um Deus Passeando na Brisa da Tarde
6/20/2006
Laughing At Life*
Salvador Dalí - Paysage aux Papillons
«Bad, mad and dangerous to know».
Gostei tanto desta definição, Carlos, que te dedico este sorriso da Billie. Enquanto eu mesma sorrio. As borboletas estão só na paisagem. Que é seguramente um local adequado às borboletas, quando se anuncia o verão.
* Billie Holiday (2:54) in 'The Lady Sings'
6/19/2006
Parallels*
Jackson Pollock - Male and Female
Viveremos. É verdade. Que viveremos. Tu contra o que te dei. Eu a favor de quanto me ofereceste. Paralelos. Viveremos. Como duas linhas que jamais se encontrarão. Tendo-se já encontrado. Como duas margens de um rio. Juntas na nascente. Mas depois. Transportando a água. Para outra água. Viveremos. Certamente. Viveremos. Afastados da nascente. Velozmente. Procurando. Outra água.
Não sei onde te perdeste dos meus olhos, se ainda os tenho. Não sei onde te desencontraste das minhas mãos, se ainda são minhas. Não sei onde te esqueceste do meu corpo, se ainda o sinto. Não sei onde deixaste a minha boca. Se ainda a tenho aberta à espera dos teus dedos. Um por um. Não sei para onde foste, se ainda aqui te encontro. Mas creio saber que te vestiste. E mesmo assim. Entraste. Nessa outra água que não transporto. Enquanto eu continuo nua. Nua como quando foste tu que me vestiste. Mas de gestos. Nua como quando também estavas nu. Como quando nascíamos da mesma água e nos fazíamos dançar. Uma e outra vez. Como quando corríamos no mesmo rio. E não tínhamos margens a limitar a nossa dança. Nua à espera que regresses. Sabendo já que. Viveremos. Seguramente. Viveremos. Paralelos. Os meus olhos já esquecidos. As minhas mãos já sem magia. O meu corpo sendo apenas o meu corpo. A minha boca à procura da tua, na expectativa da água onde (nos) dançaríamos. Outra vez.
*Keith Jarret (4:58) 'Dark Intervals'
6/14/2006
Just Say I Love Him*
Paul Klee - Remembrance of a Garden
Quero dizer que o amo. Ainda. Não me custa amá-lo. Ainda. Nem não o ter. Como o tive. Completamente nu. Evidente. Não dele. Mas meu. Quero dizer que o amo. Ainda. A sua nudez. A sua evidência. Não me custa amá-lo. Apesar de não ser já meu. Não me custa amá-lo. Apesar de o ter deixado ir embora. Já tão vestido. Amo-o. Chove. E eu preciso dele. Apesar de já não o ter. Não me custa precisar dele. Chove. E eu preciso dele. Como as flores precisam da água que não nasce da terra, mas do céu. Quero dizer que o amo. Agora. Que ele caminha por outra cidade. Outra estrada. E já não é meu. Alguém o há-de ter. Como eu o tive. Alguém o verá dormir. Como um menino. Respirar. Como qualquer pessoa. Alguém o terá. Evidente. Nu. Sem ser dele. Mas quero dizer. Assim mesmo. Que o amo. Que preciso dele. Como as flores precisam da chuva. Quero dizer que me lembro. Do jardim que nascia nos seus olhos. Chove. Ninguém lhe dirá. Nem eu. Que ainda o amo. Porque não importa.
* Nina Simone (6:35) in 'Forbidden Fruit'
6/09/2006
Chair in the Sky*
Pablo Picasso - Woman in an Armchair
Uma cadeira de braços. No céu. Ou a partir de onde eu imagine o céu. Com estrelas. Demasiadas. Um céu de inverno. Com improváveis estrelas. Frio. Uma cadeira de braços. E eu sentada nela. Tão intactos quanto possível. A cadeira. O céu. Uma intacta cadeira num intacto céu de inverno com estrelas de intacto brilho. Improváveis. E eu. Provavelmente desfragmentada. A esquizofrenia de que (ainda) não padeço porque a reconheço quando chega. Talvez já esteja nos braços da cadeira. À espera que eu me sente e tente. Reunir fragmentos do que sou e serei. E do que fui. Se. Um dia tiver uma cadeira de braços. Intacta num intacto céu de improváveis estrelas de brilho intacto. Acho que serei. Uma velha mulher. Apenas sentada numa cadeira. De braços. No céu.
* Mingus Big Band (9:05) in 'Live in Time' - Disco 2
6/05/2006
Que Pasa?*
Anselm Kiefer - Falling Stars
Nada. Não se passa nada. Absolutamente nada. Excepto só me apetecer estar dentro deste quadro de Kiefer. Deitada na erva. A olhar para o brilho das estrelas (o que me falta a mim) e não fazer nada. Absolutamente nada. Talvez pensar em ti. Perguntar às estrelas: Que pasa? E elas vão responder-me que te sentes assim feliz como eu. Por nada se passar. Por estar tudo bem. Por estares noutro sítio qualquer. Deitado noutra erva. A contemplar o brilho das estrelas. Não outras. Mas exactamente. Absolutamente as mesmas. Não se passa rigorosamente nada. E no entanto. É como se vivessemos a absoluta comunhão de tudo. Ainda. Na contemplação das estrelas. Na felicidade sossegada que é nada se passar. De podermos. Ainda. Embora cada um por seus caminhos. Deitarmo-nos na erva. E olhar para o brilho das estrelas. Com a cara toda.
* Horace Silver (7:47) in 'Song For My Father'
6/02/2006
All Right, Okay, You Win*
Jackson Pollock - The Moon-Woman
Agora. A lua está tão crescente. E eu estou assim. A ver se não mirro. Agora. Vamos dar ritmo às estrelas. Esquecer que estão mortas. Agora. Só me apetece ser feliz. Deve ser destas noites carregadas de flor. Cobertas de cheiros. Agora. A mim também. Só me apetece estar em flor. Crescente de de dias claros. Grávida como as árvores de fruto. Coberta do cheiro das giestas e do jasmim. Deitar-me nua contigo nas ervas quentes. E fingir. Que estou na lua.
* Peggy Lee (2:53) in 'The Best of Miss Peggy Lee'
5/31/2006
Salt Peanuts*
Henri Matisse - Le Lanceur de Couteaux - quadro XV da série Jazz
Recolhimento parece ser a palavra chave para chegar ao céu. Recolhimento. Recato. Vergonha na cara. E na ponta dos dedos. As misérias pequeninas que vivemos não se expõem assim como roupa a pingar no arame. Sobretudo se a roupa estiver rota. Ou muito mal lavada. Não se expõem assim. Nem as misérias. Nem as felicidades. Nem as paixões. Nem a morte. Nem a vida, afinal, se expôe assim. Para se chegar ao céu. De alguns. Parece que o sofrimento exige silêncio. O amor implora contenção de palavras. E a vida só pode ser vivida segundo apurados princípios que não entendo. Até desconheço. Não sou mulher recatada. Nem recolhida. Faço um barulho do caraças por tudo e por nada. Não acho que a dor, ou o seu contrário, sejam tão nossas que não possam ser ditas. Isso deve fazer de mim uma péssima pessoa. Então sou. Essa pessoa péssima. Que ouve, por exemplo, esta música. E, ao mesmo tempo, tem o descaramento. A pouca-vergonha. De sofrer. E de dizer. Que sofre. Ou que ama. Ou que se apaixona. Ou que já não ama. Ou que se enganou ou a enganaram. Ou.
Sei que nada do que aqui se escreve - dor, misérias pequeninas, amores, desamores, paixões e vida - tem qualquer interesse.
Se alguma coisa tem interesse neste lugar não são as palavras. Mas a música.
De qualquer modo eu não acredito no céu
(a menos que o céu seja um lugar onde ninguém tenha morrido, onde se ouça sempre jazz, onde se possa beber uma guinness sossegadamente e onde ofereçam amendoins salgados).
* Bud Powell, Dizzie Gillespie, Charlie Parker, The Quintet, Max Roach (3:13) in 'Jazz at Massey Hall'
5/28/2006
Alone Together*
Gustav Klimt - Death and Life
Os mortos nada sabem, porque já nada podem saber. Da morte não se regressa.
Mesmo se, às vezes, parece que os nossos mortos (nos) sabem
(certamente à força de tanto querermos que saibam).
Mesmo se, às vezes, parece que os nossos mortos regressam
(certamente à força de tanto querermos que regressem).
Não há regresso nem conhecimento para os mortos
(mesmo se, às vezes, parece que ainda há quem nos (re)conheça, estando morto).
Morreste(me). E já não podes saber nada de quem sou
(se nem eu sei!).
Já não podes saber que é a ti que procuro quando só outros encontro. Outros que não estão mortos
(mas, na verdade, tanto me fazia se estivessem).
Já não podes voltar(te) quando te chamo
(porque preciso de ti)
às vezes com o desespero de precisar só da tua mão percorrendo o meu cabelo. Outras vezes com o brutal desejo dos teus braços. E, raramente, com a certeza de que me ampararias as lágrimas.
Disfarço. Que a morte assusta os vivos. Os nossos mortos assustam-nos os vivos. E, assim sendo, para que ninguém se assuste, disfarço
(está este calor dissolvente e os mosquitos agrupam-se no vidro, na expectativa da luz).
Morreste(me) e não penses
(como se pudesses pensar ainda)
que te esqueço quando procuro e, por vezes encontro, outros braços, outros corpos, outros que (me) encontram quando, por vezes, procuram. Não penses
(como se pudesses pensar ainda)
que não é a ti (e só a ti) que sigo querendo
(na expectativa da luz).
Disfarço.
(um mosquito entra dentro do quarto demasiado quente, apesar da janela fechada. Há sempre pequenas brechas para quem procura. A luz)
e mesmo assim. Nos percursos diários. As pessoas revelam-me o que, embora vivas, desconhecem. Estás com bom ar. Estás mais bonita. Que tens andado a fazer?
(A cabra! Com melhor ar! Mais bonita! Do que o antes da tua morte!).
Disfarço. Nos percursos diários. Revelam-me o que (ainda) não se sabe.
O que ainda se desconhece é que morrendo, me mataste
(e, já se sabe, aos olhos dos vivos, os mortos serão sempre mais bonitos do que alguma vez foram em vida).
Os vivos desconhecem que disfarço a vida. Que estou morta da tua morte. Que morri a morte que morreste
(na expectativa da luz)
e que cuidaste, talvez, só tua.
Os vivos desconhecem que nada sei já também. Porque nada posso já saber. Não posso regressar da (tua) morte.
Mesmo se, às vezes, parece que sei
(A cabra!)
Mesmo se, às vezes, procuro regressar
(com melhor ar! E mais bonita! Que andará a fazer?)
na expectativa da luz.
* Brad Mehldau, Lee Konitz e Charlie Haden (13:45) in ‘Alone Together’
E porque existem muitas versões, escolho também estas com que disfarço a vida. Ou a morte. Tanto faz:
Miles Davis (7:20) in 'Blue Moods'
Chet Baker (6:46) in 'Chet'
Wallace Roney (8:54) in ‘Alone Together: Essential Late Night Jazz’
5/23/2006
I Mean You*
H. Matisse - Le Destin - quadro XVI da série Jazz
Sou descrente no destino. No futuro traçado. Nas decisões tomadas como inabaláveis. Mas, por uma vez, gostaria de acreditar no destino. No futuro. Para ter a certeza. Para tomar a decisão. Inabalável. Para saber. Que estarás lá. Ou que estarás aqui. Ainda. Gostaria que este momento passasse depressa. E que o futuro não fosse assim um lugar tão longe. E tão inviolável. Por uma vez gostava de acreditar no destino. E nessas coisas assim. Para me desresponsabilizar do que foi feito. Do que foi dito. De todas as palavras que trocámos como se fossem animais selvagens em luta por um território. Por uma vez. Gostava de acreditar no destino. Para saber. Que mais tarde ou mais cedo. Uma esquina nos servirá de encontro. E que em ti haverá ainda qualquer coisa que me chama. Acreditar. Uma vez só. No futuro. E que um breve olhar nos devolverá ao princípio do que tem agora fim. Por um momento. Acreditar. Que as palavras que atirámos não foram pedras. Mas setas ao coração do silêncio. Ou da solidão. Por uma vez gostava que o destino estivesse traçado. Que houvesse um mapa do futuro. E que todas as estradas nos reconduzissem à primeira vez em que estivemos um no outro. Diluídos. Reencontrados. Sossegados.
*Art Blakey & The Jazz Messengers with Thelonious Monk (7:58) in 'Art Blakey's Jazz Messengers With Thelonious Monk'
5/18/2006
Now's The Time*
M.C. Escher -Mobius Strip
É tempo. Em tempo. De dar por perdido o tempo. Sabendo que haverá mais tempo. Para perder o tempo. Reencontrar o tempo. Ter tempo para ter tempo. Para isso existe o tempo. Para que se perca. Há um tempo perdido. Para ser esquecido. Há outro tempo. Também perdido. Que escondemos na memória. Para usar quando tivermos tempo. E lembrar. O tempo é aquilo que não nos cansamos de perder. Infinitamente.
* Miles Davis (3:17) in 'The Essential Miles Davis' - Disco 1
5/15/2006
I Get Along Without You Very Well (Except Sometimes)*
Claro que vou andando. Muito bem. Bom, pelo menos o melhor possível. Excepto quando de repente o meu dedo indicador sente a falta das tuas sobrancelhas. Ou a minha língua pressente a ausência das tuas pestanas. Mas claro que vou andando. Muito bem. Ou pelo menos o melhor que posso. Excepto. Quando. Sem mais nem menos. Me esqueço de respirar. Porque me falta. O teu ar. Mas claro. Vou andando. Muito. Bem. Pelo menos. O melhor. Possível. Excepto quando toca o telefone. E não é a tua voz. Claro. Tal como disse. Vou andando sem ti. Muito bem. A menos que a manhã me lembre a ausência da tua cara na almofada. Ou o apito do comboio me revele a inutilidade de continuar na estação. Mas sim. Vou andando. Muito bem. Sem ti. Excepto às vezes. Mais concretamente quando murmuro. 'Amo-te'. E é apenas o silêncio. Dentro de mim. Que me responde. Mas então. Talvez eu deva. Não mais. Murmurar. Nunca. Nada.
* Nina Simone (4:56) in 'Nina Simone and Piano'
«I get along without you very well / Of course, I do / Except when soft rains fall / And drip from leaves then I recall / The thrill of being sheltered / In your arms / Of course, I do / But I get along without you very well / I’ve forgotten you / Just like I said I would /Of course, I have / Or maybe except when I hear your name / Someone’s laugh that’s just the same / I’ve forgotten you just like I should / What a guy / What a fool am I/ To think my aching hearth / Could keep the moon / What’s in store/ Should I phone once more /No, no, no, no, no / It’s best that I stick to my tune / I said that I get along / Without you very well / Of course, I do / Except perhaps in spring / But then I should never /Ever think of spring /For that would /Surely break my heart in two»
5/12/2006
Just in Time*
Salvador Dalí - The Persistence of Memory
Das palavras sobram mãos vazias. Olhos desfeitos no assombro. Boca suspensa no espanto. Das palavras sobra a sombra. Persistente. É possível. Porque tudo é possível. Escrever intensamente. Mesmo sem mãos. Sem olhos. Sem boca. É possível escrever. Intensamente. Mesmo sem sangue nas veias. Das palavras sobra a sombra. Fria. Um instante apenas. Em que nos esquecemos. Da memória. Talvez. Propositadamente. Para fingir. Ou acreditar. Tanto faz. Que além das palavras havia os gestos. E os olhos. E a boca. E as mãos. E o sangue. Das palavras assombrosas sobra a sombra. Uma sombra que se espalha. À medida que o sangue volta a ser o nosso. Uma sombra que se estende numa inundação de mágoa. Mas cresce. Mesmo a tempo. Do reencontro com a memória. Dos gestos lá atrás. De tal modo intensos. Que as palavras não lhes beberam o sangue. Mesmo a tempo. Recupera-se a memória. Mesmo a tempo. Respiramos. Mesmo a tempo. O sangue corre. Os olhos desassombram-se. A boca encontra o beijo. Os gestos voltam às mãos. Mesmo a tempo. Encontramos a memória. Mesmo a tempo. Perder-nos-emos. Outra vez.
* Sonny Rollins (3:55) in 'The Freelance Years: The Complete Riverside and Contemporary Recordings' - Disco 3
5/08/2006
So What*
René Magritte - The Unexpected Answer
Não era uma porta. Afinal. Era um coração. Quando um coração se fecha faz um barulho do caraças. Quando um coração se fecha faz um barulho i n s u p o r t á v e l. E eu à espera do buraco na porta. E eu à espera do buraco no coração. Eu. Que faço ainda eu aqui. Com este buraco cá dentro? Nenhuma resposta. Um coração fechado. Com muita força. Outro com um buraco. E depois? E então? Ninguém morreu dizem-me. Ninguém se feriu com gravidade. Repetem-me. Um acidente inconsequente, portanto. Lamentável. Mas. Ainda. Assim. Inconsequente. E depois? E então? A porta fecha. O coração fecha. O buraco há-de coser-se com linha grossa. A cicatriz ficará horrível, já se sabe. Mas ninguém morreu. Ninguém se feriu com gravidade. Voltam a repetir. Me. Bateu-se com a cabeça nas paredes. Com o carro contra uma árvore. Com a puta da existência contra o que de pior somos. A vida continua. Fácil e leve. Como sempre. E depois? E então? Ora. Há-de aparecer alguém. Numa curva lá mais para a frente. Alguém a quem se dará boleia. Alguém que. Quando te despires completamente. Verá a cicatriz horrível. Mas não te fará perguntas. Nem quererá respostas. Limitar-se-à a passar o dedo pelos altos da carne mal cerzida. E compreenderá os teus dias bons. Os teus dias (demasiado) maus. O teu lado do sol. E o teu lado (muito) escuro . Com sorte. Alguém que. Te descoserá a cicatriz e com linha de seda e mãos seguras te recuperará a pele. O coração. A porta. E depois? E então? Nada. É mesmo assim. Um coração quando se fecha faz um barulho indescritível. Quando se abre, o coração, é num silêncio absoluto e límpido. O silêncio com que estranhamente se aceitam as pessoas mortas. As pessoas feridas. As pessoas (des)conhecidas. Apesar de tudo.
* Miles Davis (9:25) in 'Kind of Blue'
5/05/2006
Chaos*
M.C. Escher - Illusion, an Ordered Confusion
Sossega. Te. Tudo tende para o caos. Até o que sentes. Ou. Principalmente. O que sentes. Não há calma. Mas sossega. Te. Sabes. Que. Quem é. Já foi. Quem foi. Volta a ser. Quem não é ou foi. Há-de ser. O que sentes talvez nem sequer já seja. Perdeu a importância. Não foi? Porque nem sabes o que sentes. Agora. Falas-me de raiva. E eu atiro-te com a paciência. Falas-me de banalização. Eu atiro-te com o sentido da palavra amor. Pouco banal. O meu sentido. O que tu não conheces. Tudo isto. Vais ver. Já passa. Em breve. Sossegarás. E serás o que antes eras. Não sei o quê. Sei lá o quê. O que eras. Antes. Deste caos. Para onde nos atirei. Estou cansada. Também. De que o amor se esgote. Assim. De que o amor acabe. Assim. De que as pessoas procurem. Apenas. Sossegar. Se. Desculpa. Me. Se fui única. E sou já tão vulgar.
* Wayne Shorter (6:54) in 'The All Seeing Eye'
5/03/2006
Blue Bolero*
Salvador Dalí - Melancholy Atomic
Afinal. Nenhuma palavra. Poderá salvar. O mundo. Ou outra coisa qualquer. Afinal essa palavra não me salvou do frio. Afinal eu amo-te. E afinal. A palavra. Essa. Já não tem sentido. Afinal. O deserto é azul. Afinal. Que te pode interessar tudo isto agora?
*Abdullah Ibrahim (o tempo que demorou a tua mão na minha) in 'African Magic'
4/27/2006
Blue Skies*
René Magritte - La Promesse
Não é como se uma única palavra tua me salvasse. Mas dizes-me uma palavra. Essa. E acontece que me salvas. Salvas-me de mim. Do que (não) era capaz. Muitas coisas vão desaparecendo. E no seu lugar. Outras coisas. Nascem. Como eu nasço. Salva. Ou limpa. Quando me dizes a única palavra que me parece possível. Entre nós. Como eu nasço para ti. Nas tuas mãos. Ou no teu peito. E não haverá mais nada. Que não céus azuis. Pássaros azuis. Dias claros. Horas inteiras. Instantes tranquilos nos teus olhos. Olho-me, salva, ao espelho. E penso. Em que céus azuis voavas tu que não vinhas ensinar-me a felicidade? Não é como se uma única palavra tua me salvasse. Mas dizes-me. A única palavra. Que importa. No mundo. E acontece. Que me salvas.
*Dinah Washington (7:52 ) in 'After Hours with Miss D'
4/20/2006
Soul of Things*
René Magritte - The Lovers
Não te vejo. Amor. Eu não te oiço. Estou cega. E quero seguir-te. Sem que as coisas tenham peso. Apenas a substância dos sentidos. Sem tempo. E quero seguir-te. Guiada apenas pelo toque dos teus dedos. Não te vejo. Não te oiço. Às vezes não existo. Outros homens cruzam os seus olhares com o meu. Mas eu estou cega. E não os oiço. E não os sigo. E era fácil. Ser guiada por outros dedos que não os teus. Porque. Às vezes. Quero. Ver. E ouvir. E sentir o que não pode ser visto ou dito. Quero seguir. Te. E não há guias. Às vezes há este deserto. Amor. E não te vejo. E não te ouço. E. Nem sequer. Sinto. Que estás aqui. Às vezes há este deserto. Dissolvente.
* Tomasz Stanko Quartet (5:41) in 'Soul of Things'
4/18/2006
Il N'Y A Pas D'Amour Heureux*
Il est déjà trop tard. Pour moi. Trop tard pour t'aimer comme t'as besoin d'être aimé. Je suis désolée. Je ne sais pas quoi faire. On dit que l'amour suffit pour faire tourner le monde. L'amour ou... disons... un tournesol. Mais l'amour il ne suffit pas. Et tu le sais. Le monde est grand et moi... moi je suis trop petite. Pour toi. Pour tout ce qui tu veux de moi. Du monde. De l'amour. De la vie. Moi... j'ai rêvé qui je voudrait exactement la même chose. Mais il était un mensonge. Je suis pas capable de t’aimer comme tu mérites. Je suis pas capable de faire partie de la religion du tournesol. Je parts. Et, en partant, je sais qui je t’aime. Et qui tu… toi aussi… tu m’aimes. Mais. Il y est trop tard pour moi. Pour t’aimer. Pour avoir un amour heureux. Je n’ai pas du temps. Et surtout je n’ai pas du talent.
*Nina Simone (6:25) in 'A Single Woman'