5/18/2006
Now's The Time*
M.C. Escher -Mobius Strip
É tempo. Em tempo. De dar por perdido o tempo. Sabendo que haverá mais tempo. Para perder o tempo. Reencontrar o tempo. Ter tempo para ter tempo. Para isso existe o tempo. Para que se perca. Há um tempo perdido. Para ser esquecido. Há outro tempo. Também perdido. Que escondemos na memória. Para usar quando tivermos tempo. E lembrar. O tempo é aquilo que não nos cansamos de perder. Infinitamente.
* Miles Davis (3:17) in 'The Essential Miles Davis' - Disco 1
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9 comments:
Até hoje ainda não percebi se perdemos tempo ou se são os outros que nos fazem crer que o nosso tempo é um dado perdido. Ou se somos nós que consideramos o tempo como perdido porque, simplesmente, não há mais volta a dar...
Aviso aos navegantes
Fragmentos preambulares:
1- [...] mal se escrevia em 1802, e se eu hoje o faço é conseqüência das obrigações que meu pai me impunha. Sua velada ascendência moura, retida por trás de uma parede falsa à cabeceira de sua cama, reservava uma predileção por saberes mal vistos na corte de Dona Maria (aquela que diziam louca). Sentava-me, coluna ereta, pés no chão, descalços e paralelos, absorvendo o movimento telúrico para, enfim, com gestos firmes e precisos traçar as letras que comporiam o texto. Tudo de acordo com os manuais que trouxera do oriente.
Guardei, ambidestro que sou, na minha mão esquerda, a escrita profana de meus ancestrais e, na direita, a retidão do sagrado cristão. Da direita para esquerda, uma, da esquerda para a direita, outra. Ao se cruzarem, mãos e escritas, emergiram alguns monstros dignos de pesadelos dos argonautas. De fato, eu os achei belos – daí os problemas na corte. E meu velho pai, com o seu antigo temor da cruz (entendam: ele já estava estabelecido e até conseguira um título às custas de alguns presentes para as pessoas certas), embarcou-me.
* * *
2. Ela sempre dizia isso, a Maria: “suas cartas são rápidas, efêmeras... Conte-me detalhes do novo mundo. E seus afetos? Sempre velados, fugidios. Escreves como se não quisesse fazê-lo. Espero em suas letras a sua voz, mas m’a nega. Permita-me, em suas letras, insisto, o calor que um dia partilhei. Assim, do modo que tens escrito, parece-me mais distante do que a distância que nos separa. Além do oceano a sua carta. Imensidão que torna meus desejos deserto. Só. Sei que agora escrevo mais para mim do que para você, mas, ainda assim, revelo-me. Você, não. A sua escrita se cala. Não espero mais sua resposta”. Ela sempre dizia isso. Queixa-se dos meus humores, a mulher. Queixa-se do silêncio. Queixa-se da única coisa que eu poderia lhe dar. E dei. O meu silêncio, na madrugada, roubando o seu amor, embrenhando-me em sua pele velado pelo nosso também silencioso acordo. Escrevia o silêncio com nosso suor. Hoje, não. Sinto-me ladino, furtivo... Hoje eu roubo um falso silêncio que corrói minha garganta. Silêncio dos primeiros dias de exílio. Culpo-me por algo difuso que se apossa de mim: uma imensa raiva desterrada, sem raízes, que poderia se ligar a qualquer coisa e matá-la. Percebo-me rancoroso. O meu silêncio, ah, o meu silêncio, hoje, é mortal.
Era um jogo, as cartas. Incerto destino, nem sempre chegavam ao seu. Escrevia-as para serem lançadas ao mar. Sob tempestades e calmarias, revoltas e piratas, sede e mar, são ilhas as cartas, melhor, naus à deriva. Para quem escrevi as cartas? Não foram escritas para Maria, nem tampouco para meu pai. Escrevi apenas para vê-las ao mar. A dureza ou frieza das letras era apenas para que ela, a carta, fosse apenas uma carta, e não um emaranhado de fios lamuriosos. Uma carta navegando. Chegou a um porto e eis o seu fim.
Batem à porta.
Quero e peço mais vinho. Quero o seu sabor no céu da boca e se fixando no palato como que com unhas. O meu silêncio, hoje, mantém-se na embriaguez. Silêncio emborrachado que sabe a uva.
* * *
3- ...“compreendi, enfim, o desenredo de nossa (?) história. O destino é se esfumar como as ondas contra as rochas. Hoje o céu, o mar e a rocha estão cinzas. E é assim que eu me sinto: confusa. A nossa história só é narrada por lacunas, nos afastamentos que nos impomos, distâncias –– sempre largas –– estejamos próximos ou não. Escrevo-te como quem grita à beira do Atlântico esperando ser ouvida no novo mundo. ‘Eu te amo!... Eu enlouqueço!...Eu, cá!’ E a voz, dissolvida no vento, dói em mim. Oh, como é vão cada traço, cada letra que, estilete, mais me fere que a ti. Esperava poder ferir-te, também. Mas as letras/naus vão rumo ao desencontro, você mo disse outrora.”
“Compreendi!... Enfim, isso de nada adianta –– compreender. Há um sentido na nossa história? Ei-lo: rupturas, turbilhões, vagas, mar revolto. O meu amor é o mar que lambe, quente, seus pés no novo mundo. Acaricio e refresco a sua pele queimada, você submerso em mim. Aqui, o mar frio ¬–– o seu amor aos meus pés? Hoje, enquanto escrevo, apenas o silêncio e a brisa fria me falam de ti. Exilada. Por que o frio desse cais não me cala?”
* * *
4. O que queres, mulher? Amigos já me disseram: pergunta ao poeta. E o poeta, o que me diz? “Poesia, dê-lhe poesia”. Mas eu não sou poeta, ouviste? EU NÃO SOU P-O-E-T-A!!! Não sei esculpir ou lapidar palavras. Mal consigo cuspi-las. Você já, um dia, me disse: minhas palavras ferem. Como, já me disse outro poeta, então, pousarei minha língua em sua boca? Como, se minha língua só tem espinhos?
Se poeta, só se de estirpe ainda não identificada. Poeta cuja poesia é tão grotesca (suntuosa?) como as estranhas vegetações que cobrem esse meu novo mundo. Talvez por aqui germine uma nova poesia. A minha poesia, se o é, é como os cipós que se enrolam –– parasitas –– nos troncos das árvores gigantescas e tentam subir aos céus para, enfim, perceber que o seu destino é o chão. Aqui, no ventre da selva. Aqui onde o céu é recoberto por folhas de um escuro verde e, quando a luz se aventura por entre, destaca seus relevos sombrios para, mais adiante, mostrar a ferocidade das cores jamais vistas ou compostas nas mais primorosas telas dos mais prestigiados e imaginosos pintores que tenhas visto na corte. Que poeta poderia criar o profundo silêncio que os gorjeios, silvos e rosnados emolduram? Estou em uma terra que é a própria vida em gestação sendo devorada por formigas. Vida plena, bela e mortal. Sinto-me bem, cá. Confundo-me e me conforto.
Cá percebo que não vale à pena defender idéias sobre o Belo, o Sublime, o Amor e adjacências. Tenho isso, hoje, como um suicídio. Furto-me, pois. Não me peças poesias como aquelas que, roubada de outros poetas, eu sussurrava em seu ouvido para me pagares com seus beijos e o enlaçar de suas coxas. Convido-te ao silêncio. Cá o silêncio é voluptuoso. Era assim, nas nossas primeiras madrugadas, quando você soprava meus pelos e deslizava pelos meus poros. Lembro-me de seus seios quase transparentes confortando-me. Os de Jandira são de sol e sal. Sem pudores me olham enquanto escrevo. Jandira sorri dos meus rabiscos, ela, que escreve na pele e nos cestos.
* * *
5. Aquilo que, um dia, desprezei, hoje, aprecio. O tosco. O limo que invade a pedra. Eu, pedra. O limo das sombras me cobre e viceja para secar com o sol. O líquen seco, levado pelo vento, leva pedaços de mim. Eu, poeira. E as marcas do lodo ficam em mimesmado, pedra – que o tempo e o limo se encarregam de por em movimento. Eu, pedra, vôo com o vento que o lodo me dá.
Escrever o que me açoita? O vento e o silêncio. O murmúrio do seu mar plúmbeo, consegues ouvi-lo? Percebes nele o silencioso dialeto da volúpia cá dos trópicos?
* * *
5. Mais adiante, após a grande árvore que sobressai às outras, tem um desfiladeiro. Criei inúmeras palavras para conter as suas encostas que desciam sobre mim, impiedosas. Conto-te: num possível dia santo a floresta se abriu e mostrou-me um vale encantador (lembre-se que o encanto, aqui, situa-se entre o magnífico e o aterrador). Jandira não me acompanhou – disse-me algo sobre a interdição do ventre materno – e eu deixei-me guiar pelo cheiros, sons, cores e pelo tato úmido da respiração telúrica. Perdi-me. Criei preces para todos os deuses e milhares de palavras pagãs para me guiarem naquele inferno. Digo-te: há júbilo no horror. Em algum momento acreditei no poder mágico das minhas palavras – acalmavam-me – e cri que elas poderiam levar-me a algum lugar. As palavras continham o desfiladeiro e enfeitavam suas paredes íngremes que respondia arrancando-me as unhas, cortando-me a pele, esfolando meus pés e, minguado meu crédulo ímpeto, revelavam-me o meu obscuro lugar: alimento. Aprisiono-me aqui onde o sol se cala.
D’antes alegres, fauna e flora parecem indignadas com a minha presença. Impressão, só. Um corpo estranho, apenas. Mais palavras, voluptuosas palavras, escapam da minha boca para se somarem ao mundo voluptuário que me assalta. Mais um som estranho, ruído, silvo. E assim, Maria, nel mezzo del cammin di nostra vita mi ritrovai per una selva oscura, ché la diritta via era smarrita. Ah quanto a dir qual era è cosa dura, questa selva selvaggia e aspra e forte che nel pensier rinnova la paura! Io venni in luogo d’ogni luce muto, che muggia come fa mar per tempesta se da contrarii venti è combattuto. Clamei ao poeta a luz das entranhas. Lembro-me disso. Poetas obscuros que falam de coisas que não deveriam ser ditas. Blasfêmias. Interditos. Aqui o ventre, o seio e a morte são um. O que me mata, me alimenta e me mata de novo. Gozo. Lembra do inferno? A volúpia aqui não tem nome. Submerjo. Caio como um corpo morto cai.
Lembra-se, Maria, quando eu falava da liberdade como um fim? Pois hoje sou prisioneiro dela e ela não é nada do que eu supunha em meus devaneios sádicos. Aqui, o cais é o caos.
Aviso à navegante: meu nome: Luiz: Salsa: meu blog: jazzseen.blogspot.com.
Escrevo infâmias e poesias.
Luiz
Visitarei o Jazz Seen.
Obrigada pela sua visita, mail e comentários.
Vanessa
inclino-me para a última hipótese que colocas... pois... 'vou uma vez mais correr atrás de todo o tempo perdido' e (b)la (b)la etc
:-)
Tempo perdido?
O tempo é como o Amor, quanto mais se dá mais se recebe.
Uma pequena recomendação no meu sítio, Elisa.
Abraço.
Obrigada Carlos. Anotado. Aceite a recomendação. Sem pensar.
Beijo.
Como expliquei no meu "estaminé", não há o que agradecer, Elisa. :)
Abraço.
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