7/09/2005

We Have all the Time in the World*












We have all the time in the world com Louis.

Nos anos vinte-trinta os “gatos” de Chicago acorriam à janela quando chovia, sob pretexto de apanharem gripe na voz. A ideia metaforizada é mais ou menos esta, é de Earl Hines e explica bem o sucesso do ‘reverendo Satchmo’.
A intenção, sublime, era nada simples: procurar chegar perto do timbre de voz de Armstrong. A inconfundível e esgarçada rouquidão, quase rota, quase terra, do preto Louis.
Estou no rol dos românticos da banheira: canto com a água (a água é suor caindo-me da emoção) e faço do chuveiro micro.
Se me apanho ao volante transformo o trânsito numa tournée a solo estrada fora, tenho a voz de quantas vozes vou ouvindo; ao volante aquelas vozes são a minha.
Ouço quase tudo e tudo é insecavelmente pouco.
E canto muito e canto-me muitas vezes com Armstrong.
(Sou preta numa plantação sulista e sonho-me livre porque o Armstrong suplica, na voz dos seus olhos, a minha liberdade)
Gosto de quase tudo e quase tudo é inesgotavelmente pouco.
É jazz que a Elisa pede e eu não sei bem se é jazz o preto Louis.
Sei que me parece molhado da miúda chuva dos anos gangsters do preto Louis. Sei que é de todas as cores a noite preta do Louis. Sei que é de luz aquela noite. Sei que é branca a sombra do trompete beijado pelo Louis. Sei que geme dor o trompete do Louis quando nos registos altos só ele é capaz de ultrapassar as dores mais agudas
(o céu mais infinito).
Mais duas notas e julgamo-nos no Paraíso. Só mais dois passos e um arrepio.
Só mais um pouco e choramos cada nota.
Lembro-me do pai e do carro mais adiante e o Louis a sair do carro, a vir ter connosco enquanto a pesca resultava, pela tarde inteira, na perfeição… sem peixes nas canas.
Aqueles momentos eram o intermitente cair de folhas na orla do rio, o silêncio perfeito das fiadas elegantes da água de rio, sei que eu e o pai nos sorríamos porque o Mundo ali,
nós os três
era Maravilhoso,
(When you’re smilin’ the whole world smiles with you)
Armstrong saindo e entrando das colunas de som do carro, nós e o rio indissociáveis, amando(-nos), descansando os ponteiros na berma do rio, deixando os minutos afogar-se nas horas… e as horas uma brincadeira de peixes ao longo do rio…
Era assim, Moon River e nós…
Um licor muito forte, Elisa, uma bebedeira permanente, um riso alegre como num filme que nos faz chorar…
O Louis é a minha escolha porque do Louis eu conheço e sinto uma estranha esmagadora saudade.
Ouvi-lo é sentir saudades dele e não saber explicar porque as sinto.
Como se o tivesse conhecido, como se o tivesse tocado, como se daquele trompete saísse todo o tempo do mundo (apenas) para o amor.
E saísse, todo ele, dentro de uma nota que apenas Louis é capaz de erguer do colo, apagar-lhe o tempo, mantê-la lá muito em cima, prestes a chorar… Porque Louis, como alguém soube bem dizê-lo: “é uma nota de dor”, Elisa.
Foi John Barry que ‘me apresentou’ o ‘meu’ Louis de sempre
(no seu último tema à voz, já sem trompete)
Louis cantou para Barry todo o tempo do mundo só para o amor, nada mais…
De tal forma musicada por Barry, a letra amorosa nos lábios de Louis faz-nos acreditar que não precisamos de mais nada depois dela. Que depois de tudo, e mesmo para além do amor, resta sempre o (amor de) Louis.
Louis Armstrong é a iluminação da penumbra, as noites acesas, as escovas do carro num compasso lento afastando as gotas da chuva, o dia a tombar e muito trânsito lá fora de regresso a casa, fachadas de prédios forradas a tijolo num bairro sossegado, a gabardina encharcada de um homem que atravessa a rua a correr e parece já enxuta quando entra num jazz-bar, um guarda-chuva a desaparecer ao fundo da rua, primeiros candeeiros a acender dentro das casas, a chuva a engrossar, carros atravessando pontes, outros cruzando com estes por baixo delas, árvores coreografando ondulação ao som de Armstrong, e algures numa das casas
(faz de conta)
Lucille e Louis com a gargalhada aberta apagando horas de aniversário num sopro que nos canta, nos toca, assim:
We have all the time in the world just for love, nothing more, nothing less, only love…

Quando Louis, muito doente já, disse a Arvell, o longo elemento da banda:
_
Arvell, há quanto tempo estás comigo?
Por todos esses anos, por ti e por todos os elementos da banda, chego ao fim. Não consigo continuar.
Mal sabia que tinha acabado de projectar o início do último e cumprido contrato de 3 semanas.
A partir dali nunca mais parou, apesar de ter morrido 7 semanas depois, com 70 anos apenas.
Porque depois de ti Only You
Only you Louis Armstrong.

Texto de Sandra Costa

*Louis Armstrong (3:15) in John Barry - 'Her Majesty's Secret Service Soundtrack'

3 comments:

Anonymous said...

Elisa,

Há já uns dias que te enviei este texto e te pedi que o cortasses, cortasses, se o achasses abusador... É grande, mas não chega a dizer tudo quanto Armstrong me dá gratuitamente.
Tudo neste texto é verdade e a verdade é uma estória que se pode contar com todos os dedos e a comoção arrebatada dos sentidos.
Armstrong neste tema
(infelizmente aqui incompleto, por razões óbvias)
não é bem jazz... é tudo quanto vai nele e que eu, por mais textos que escreva, não saberei nunca explicar.
Aqui chegada dei com o texto e comovi-me.
A ternura, Elisa, é um terramoto muito sereno prestes a penetrar-nos o peito.
Obrigada por este espaço acolhedor.
Quanto jazz se aprende nele, contigo...

Só uma emenda sem importância:
o link para o Tubo De Ensaio está mal direccionado:
O meu (parece que há mais) Tubo de Ensaio não tem o 'de' na sua morada hiperligada.
Mas isto não importa, porque o que interessa é tu saberes quem te escreveu o texto e que é para o teu Bebedeiras.

Anonymous said...

Já agora:

"We have all
the time in the world
Time ENOUGH for life
To UNFOLD
All the prescious things
Love has in store

We have all the love in the world
If that's all we have
You will find
We need nothing more

Every step of the way
Will find us
With the cares of the world
Far behind us

We have all the time in the world
Just for love
Nothing more
Nothing less
Only love

Every step of the way
Will find us
With the cares of the world
Far behind us
Yes

We have all the time in the world
Just for love
Nothing more
Nothing less
Only love

Only love"

(podia ser a letra de todos nós, não é?)

Elisa said...

Sandra
Correcção ao Link feita...
E, evidentemente, como já te o disse de muitas maneiras, quem te agradece esta partilha sou eu.
Bjo