7/28/2005

Broken Wing*











Edward Steichen, Across the salt marshes, Huntington, 1905


Sonhei ou estou acordado? Vejo o tempo em que
passeávamos por aquele jardim. Só nosso. A floresta de
encantamentos. Movíamo-nos e a floresta avançava
connosco. Era pelo entardecer. A lua uma pluma no teu
colo. Um dia morreste para eu poder tocar-te o rosto.
Depois trocámos gasosas embrulhadas em papel de
jornal. Bebedeiras na macieza da relva. Sangue
derramado em afagos, mil braços abandonados. Mantras
em que nossos olhos se penetraram até não sabermos
onde. Luzeiros em que nos amamentámos. Idades
esquecidas. E sobreveio a noite. Cerrada. Estonteada.
A verdade é que as parras caíram. E com a libido às
costas, foi uma escalada purpurina. Até desaparecermos
esgotados no laborioso poço do sono.

Texto de C.S.A.

* Chet Baker (10:08) in 'Chet Baker in Tokyo'

7/27/2005

Waiting for the Train to Come In*



Estou na estação. Há vários dias. A minha vida vai começar. Dentro de momentos. Ou já começou, nesta sensação inesperada e não conhecida antes.
'Eu hei-de nascer feliz numa cidade futura'**, os comboios hão-de ser o que nos transporta. Para a felicidade ou para tudo.
Podemos ler nos comboios, dormir, distrair-nos a pensar. Ver a paisagem que passa e nos aproxima da estação que escolhemos para sair e, onde, eventualmente, alguém nos espera há vários dias.
A nossa vida durante a viagem não é controlada por nós.
A minha vida vai começar e não sou eu que venho de comboio. Dentro de momentos, porque há vários dias, estarei na estação. De uma futura cidade. De uma cidade feliz. onde nascerei para estar sempre à espera dos comboios. Na estação deles. Por uma vez nascerei para esperar os comboios no sítio certo. À hora certa.
E a terra será pouca. Pouca a terra.
E quem me amar, quando eu nascer feliz numa cidade futura...
... e quem me amar (v)irá de comboio#.

* Peggy Lee (3:04 ) in ‘The Best of Miss Peggy Lee’

** Frase do poema O Jovem Mágico de Mário Cesariny.
# Título de um dos belíssimos filmes de Patrice Chéreau (1997) ou seja - Ceux qui m'aiment prendront le train

7/26/2005

Now Here (Nowhere)*










A. Adams -Clearing Storm


Não… não me parece que existam expectativas. Aqui. Procura-se um lugar onde nos conheçam. Isso é tudo. Um lugar onde nos conheçam antes de termos começado a existir. Nas expectativas. Um lugar na cabeça. Uma cabeça fora do sítio. Um lugar na memória do que não esperámos. Um golpe de asa. Podemos dizer assim. Uma asa que voe ou que não voe. Apenas uma asa. Que chega. Ou se pressente suavemente. E pode estar. Ou ser. Ou não. Ou nada.

* Dave Holland Quartet (com Barry Altschul; Sam Rivers e Anthony Braxton) (4:36) in ‘Conference of the Birds’

Take My Breath Away*








Põe-me o coração perto da boca. Finge que é através do coração que respiramos. Põe o teu coração perto da minha boca. Respiro o teu sangue. A agitada viagem do teu sangue. O teu coração ao pé da boca.
Deixa-o bater, assim violentamente, na minha boca. Como se fosse o meu que urgentemente respirasse.
Ou não pudesse bater mais.
Sem respirar-te.

* René Marie (5:25) in 'How Can I Keep From Singing'

7/25/2005

Annobon*



Quando chegámos à ilha de Annobon,
a primeira coisa que fizemos foi procurar
um sítio onde arrumássemos as lágrimas.
Não havia como chorar num sítio assim,
com mulheres dançando ao ritmo do vento,
polpas de palmeira em troncos de papel,
sombras conduzidas pelo sopro de deus
como a areia nas dunas de um deserto distante.
A música é o vento que leva o corpo.
E a dança é só uma técnica de respiração.
Assim é em Annobon. Recordo os olhos
das crianças, pequenos focos de luz
a saltarem da carne preta. Os seus sorrisos
de estômago vazio, uma ternura que é impossível
vislumbrar onde as árvores têm nome de gente grande.
Ninguém precisa de saber o nome das árvores
para amá-las. Ninguém precisa de saber o nome
das árvores para amar. Annobon vibra dentro de nós
sempre que os sopros prenunciam a maresia,
o calor, a declinação do sol sobre as águas do Biafra.
Não sei se ainda lhe consegues sentir o cheiro.
Parece distante mas não está.
Basta escutá-lo com atenção.
Gostava de adormecer todos os dias em Annobon,
esses cinco minutos que fazem valer uma vida.
Mesmo quando o sono me trai e o acto de sonhar,
escutar para dentro, rende o silêncio dos nervos à flor da pele.

Texto de Juraan Vink

*Aldo Romano, Louis Sclavis, Henri Texier (5:00) in ‘Carnet de Routes'

7/22/2005

Time After Time*



Melodia Orgástica.
Iniciam-se suaves tons, tímidos, de um saxofone. Esse beijo trocado entre receios, desejos, intimidades.
Um toque desenvolvido – ousam as mãos na descoberta.
Nesses 5min (e 40s) os instrumentos envolvem-se, dançam como os amantes. Uma sedução profunda, esse primeiro orgasmo, o rompimento, clamor altivo desse sopro…
Calma… 3 minutos de profundo entendimento, essa conversa de instrumentos (corda, sopro...) – como encaixam bem os corpos desnudados, húmidos de prazer.
De entre as provocações, prolongamentos, é chegado o momento… explosão tão serena e calidamente abraçada. Gemidos uníssonos… orgasmo(s) de amor.
Os amantes em terna copulação pelas vastas ruas do desejo.

Texto de Cristiana Gaspar

*Miles Davis (9:59) in ‘Live Around the World’

7/21/2005

Waltz*



Nunca havia pensado nele. Assim, azedo. Assim rancoroso e triste. Assim precipitado em julgamentos. Julgando-se, por isso, livre. Julgando-a a ela, por isso, menos livre. Nunca havia pensado nele, assim, azedo e fechado numa dor de que não compreende a razão. Nunca lhe havia prometido nada. Pensou, por momentos, nas conversas e nos gestos. Não houve promessa. Sim, De certeza que não lhe prometeu nada. Não? Então porquê este rancor que agora sentia dirigido a si? Talvez tenha sido pouco clara, pensou. Desde o início. Talvez quando tentou explicar-lhe as razões de como e porquê o queria e de como e porquê não podia quere-lo… talvez tivesse sido pouco clara. Foi de certeza isto. Agora recebe aquela carta e tenta perceber as razões dele para o azedume e as ofensas. As acusações e os julgamentos. Decide responder-lhe apenas: tudo como queiras.
Não vale a pena, pensa, fomentar mais amarguras. Não vale a pena responder-lhe mais. Há música em toda a parte. Uma música nele que ela desconhecia. Uma música nela, descobre agora mesmo ligeiramente aterrada, que o inclina para a tristeza. Para a tristeza, também nela, por todas as danças que (já não) serão dançadas.

* Marty Elhrich (5:04) in ‘Song’

7/20/2005

Un Certain Je Ne Sais Quoi*














H. Cartier-Bresson - Paris

Há qualquer coisa nas pessoas felizes. Dizem-me que não têm história. As pessoas felizes. Mas há qualquer coisa nas pessoas felizes. Que as torna tão atraentemente interessantes. Um 'não sei o quê'. Mas até sei. As pessoas felizes fazem-me sorrir. Sempre. É disso que gosto nas pessoas. Principalmente disso, quero dizer. Do facto de me fazerem sorrir. Por vezes são os peões a quem cedo passagem nas passadeiras... alguns têm um ar tão feliz quando me acenam um agradecimento. E lá sigo viagem. Feliz também. Outras vezes são as pessoas nas lojas. Tratam-me tão bem por estarem felizes. E lá vou eu. Feliz também. Outras vezes é uma carta de um amigo. Está tão feliz. Que a única coisa que posso fazer é sorrir. Outras vezes ainda são os pares de namorados que se cruzam comigo na rua, nas esplanadas, nos restaurantes, nos cinemas. Estão tão felizes. E eu sorrio. Nunca tinha reparado bem nisto. De sorrir a propósito da felicidade dos outros. Um dia destes alguém que passou por mim na rua, sem que eu o visse, disse-me depois que tinha ficado a olhar para mim embasbacado. Eu tinha parado numa passadeira. Passaram dois peões de mão dada. Felizes. Um deles acenou-me em agrdecimento. Eu abri o sorriso. A pessoa que me viu, de fora, disse-me... 'sorriste e estavas tão bonita, sabes?'
Talvez eu seja uma destas pessoas. Felizes.

* Biréli Lagrène – Gipsy Project (3:25 ) in ‘Move’

7/19/2005

Don't Explain*



É a tua música preferida. Qualquer que seja a versão. E há demasiadas versões para esta música.
Quase tantas como as versões que existem para a traição. Para as múltiplas traições. A começar para o modo como, no amor, nos traímos tantas e tantas vezes a nós mesmos. Quase tantas como as diversas vezes em que nos perdoamos as mentiras pequenas. Menos do que as vezes em que tentamos perdoar as verdades que magoam. As nossas. E as dos outros. É a tua música preferida. Não consegui nunca compreender porquê.
Mas lembro-me de um dia em que me falavas desta música, das suas tantas versões e do modo como e porquê gostavas tanto de todas elas. Eu comecei a chorar. Disse-te uma das verdades. Das minhas. Daquelas que, pensei eu, nos magoam.
Tu continuaste a sorrir. Pegaste-me na mão e disseste-me que não te explicasse nada. Que cada um de nós era livre. Para ir e voltar. Para partir se tivesse mesmo que ser. Não expliques nada. Disseste. Estou aqui para sempre. E estiveste. E estás. Explico-te sempre. Explicas-me sempre. Mas é como se nunca o fizessemos.
Porque somos livres. Dizemos. Ficamos contentes quando um de nós regressa dos sítios e das pessoas onde esteve. Ficaríamos do mesmo modo, se algum de nós, não soubesse já regressar?
Não me respondas. Por uma vez, não me expliques... «quiet baby, don't explain...».

* Escolhi a versão de Joel Frahm (com Brad Mehldau) (3:21) in ‘Don’t Explain’

Mas porque não podes (ou eu) passar sem as outras, aqui ficam também algumas delas,
começando por uma das muitas versões da autora:

Billie Holliday (2:33 ) in 'The Billie Holiday Songbook'

Sonny Rollins (com Abbey Lincoln) (6:38) in 'The Freelance Years: The Complete Riverside and Contemporary Recordings' (Disco 4)

Nina Simone (4:14) in 'Feeling Good'

7/18/2005

I’m Fool to Want You*



Já ia a caminho da cama, quando voltei para trás. Não sei se foi ela ou antes Billie que me terá chamado. Voltei e deitei-me, como fazia sempre que lhe passava pela porta. Namorávamos, mas na verdade apenas nos encontrávamos na cama. Se calhar namorávamo-nos verdadeiramente.
Agora chamaste-me e eu voltei àquela cama da Paiva Couceiro. Agora que até o calor ajuda o teu quarto voltou a deitar-se por baixo de mim. Aguardava-te como sempre e tu chegavas como sempre, direitinha para cima do teu quarto e eu em baixo à tua espera. Demorávamo-nos e tu chegavas e eu aparecia também em sincronia com o calor daquele tempo.
Regressava a casa de madrugada, lenta e invariavelmente com a Billie Holiday em cassete roufenha, mas suficiente para depois destes anos todos ainda me tocar.
Sabes? Não soube mais de ti, nem do teu quarto. Há dias fui à Paiva Couceiro e recusei-me a procurar-te o prédio, o andar, as varandas. Foi receio de voltar a ver o teu quarto.
Texto de [JOS]
*Billie Holiday (3:26) in 'Lady in Satin'

7/17/2005

A Love Supreme (Part 4 - Psalm)*


... talvez se ele lhe tivesse tomado a mão, naquela tarde cheia de mar, de vento e pedras. Talvez ela se deixasse levar pelo amor (por ele). Agora não. O cansaço domina tudo. Talvez. Mais nada. Só talvez. Não é uma expectativa. Não é muito, a não ser... talvez. Mas ela sempre gostou desta palavra. Deste anúnico de possibilidades. Talvez.

(...probably not to be continued)

* John Coltrane (Partes 3 e 4 - 17:50) in ‘A Love Supreme’

7/14/2005

A Love Supreme (Part 3 - Pursuance)*


Talvez se ele lhe tivesse tomado a mão, naquela tarde cheia de pedras. Talvez ela procurasse uma razão para o silêncio. Para os momentos. Para a eternidade.
Ela continuou a sentir a falta daquela pele. Talvez não fosse mais que o desejo daquela pele. Não de outra. Só daquela. A dele. Continuou sempre a começar. Olhando para além das pedras e da mão dele que naquela tarde não pegou na sua. As saudades da pele dela, nele, também iam acontecendo. Talvez. Desencontradas. Às vezes. Outras não falavam mais que aquilo. Talvez não fosse preciso. Pensava ela. Ela dizia-lhe: ‘gosto das tuas mãos’. Ele respondia: ‘ gosto da tua pele’. Talvez ambos apenas insistissem na raridade do modo como a pele deles conversava. Continuou. A começar. A gostar dele. Mas...


(to be continued...)

* John Coltrane (Partes 3 e 4 - 17:50 ) in 'A Love Supreme'

7/13/2005

A Love Supreme (Part 2 - Resolution)*


Talvez se ele lhe tivesse tomado a mão, naquela tarde cheia de vento. Talvez compreendesse melhor o momento em que o amor (por ele) a visitou, tão longamente. Ela assustou-se, talvez, com aquele gesto anunciado antes mas não cumprido até ali, até ele. Não consegue explicar. Sentiu a resolução a formar-se dentro. O amor absoluto que sentiu. Deixar o livro para trás. Deixar o corpo para trás. Deixar a cabeça para trás. Deixar o que pensou ser a indiferença para trás.
Talvez se ele tivesse experimentado o amor (por ela). Se ele também tivesse sido visitado, para além daquele momento. Para além de ver nela uma mulher. Com quem beber. Com quem morrer. Mas só ali. Talvez ela ainda pensasse naquele dia. No mesmo sítio. À mesma hora.

(to be continued...)

* John Coltrane (7:22) in ' A Love Supreme'

7/12/2005

A Love Supreme (Part 1 - Aknowledgement)*


Talvez se ele lhe tivesse tomado a mão, naquela tarde demasiado cheia de mar. Talvez o reconhecesse. A ele. A mão reconheceu-a desde sempre, pela ausência.Lembrou-se do primeiro dia. Do partilhar o sono. E da manhã. Do partilhar o corpo. E do que a pele provocou. Lembrou-se do encontro combinado, nessa manhã, para muitos meses depois, como uma promessa de reconhecimento. Havia lido demasiadas vezes Marguerite Duras. E aquela promessa adiada de reconhecimento pareceu-lhe bem. Como no Verão 80. Sim, nada é original. Não soube se ele identificou a citação.Talvez se ele não lhe tivesse atirado à saída da pele: ‘as tipas inteligentes são tão burras às vezes’… ela acreditasse que só muitos meses depois se reencontrariam. No mesmo sítio. À mesma hora. Era bonito, tudo isto.Mas voltou a vê-lo algumas vezes. A promessa adiada foi-se cumprindo pelas saudades da pele. Antecipadamente. Houve dias em que ele pegou nas mãos dela. Houve outros dias de um insustentável silêncio. Ela lembra-se. Começou a gostar dele.

(to be continued...)

* John Coltrane (7:47) in ‘A Love Supreme’

7/11/2005

Okinawa*










Escorro por ti. Acompanho as tuas mãos de água. Em todos os meus sinais te reconheço.
Sim. A pele pede mais. Água e sede. A pele bebe mais. Da tua água. Na sua sede.


* Chris Potter Quartet (9:15) in ‘Lift: Live at the Village Vanguard’

7/09/2005

We Have all the Time in the World*












We have all the time in the world com Louis.

Nos anos vinte-trinta os “gatos” de Chicago acorriam à janela quando chovia, sob pretexto de apanharem gripe na voz. A ideia metaforizada é mais ou menos esta, é de Earl Hines e explica bem o sucesso do ‘reverendo Satchmo’.
A intenção, sublime, era nada simples: procurar chegar perto do timbre de voz de Armstrong. A inconfundível e esgarçada rouquidão, quase rota, quase terra, do preto Louis.
Estou no rol dos românticos da banheira: canto com a água (a água é suor caindo-me da emoção) e faço do chuveiro micro.
Se me apanho ao volante transformo o trânsito numa tournée a solo estrada fora, tenho a voz de quantas vozes vou ouvindo; ao volante aquelas vozes são a minha.
Ouço quase tudo e tudo é insecavelmente pouco.
E canto muito e canto-me muitas vezes com Armstrong.
(Sou preta numa plantação sulista e sonho-me livre porque o Armstrong suplica, na voz dos seus olhos, a minha liberdade)
Gosto de quase tudo e quase tudo é inesgotavelmente pouco.
É jazz que a Elisa pede e eu não sei bem se é jazz o preto Louis.
Sei que me parece molhado da miúda chuva dos anos gangsters do preto Louis. Sei que é de todas as cores a noite preta do Louis. Sei que é de luz aquela noite. Sei que é branca a sombra do trompete beijado pelo Louis. Sei que geme dor o trompete do Louis quando nos registos altos só ele é capaz de ultrapassar as dores mais agudas
(o céu mais infinito).
Mais duas notas e julgamo-nos no Paraíso. Só mais dois passos e um arrepio.
Só mais um pouco e choramos cada nota.
Lembro-me do pai e do carro mais adiante e o Louis a sair do carro, a vir ter connosco enquanto a pesca resultava, pela tarde inteira, na perfeição… sem peixes nas canas.
Aqueles momentos eram o intermitente cair de folhas na orla do rio, o silêncio perfeito das fiadas elegantes da água de rio, sei que eu e o pai nos sorríamos porque o Mundo ali,
nós os três
era Maravilhoso,
(When you’re smilin’ the whole world smiles with you)
Armstrong saindo e entrando das colunas de som do carro, nós e o rio indissociáveis, amando(-nos), descansando os ponteiros na berma do rio, deixando os minutos afogar-se nas horas… e as horas uma brincadeira de peixes ao longo do rio…
Era assim, Moon River e nós…
Um licor muito forte, Elisa, uma bebedeira permanente, um riso alegre como num filme que nos faz chorar…
O Louis é a minha escolha porque do Louis eu conheço e sinto uma estranha esmagadora saudade.
Ouvi-lo é sentir saudades dele e não saber explicar porque as sinto.
Como se o tivesse conhecido, como se o tivesse tocado, como se daquele trompete saísse todo o tempo do mundo (apenas) para o amor.
E saísse, todo ele, dentro de uma nota que apenas Louis é capaz de erguer do colo, apagar-lhe o tempo, mantê-la lá muito em cima, prestes a chorar… Porque Louis, como alguém soube bem dizê-lo: “é uma nota de dor”, Elisa.
Foi John Barry que ‘me apresentou’ o ‘meu’ Louis de sempre
(no seu último tema à voz, já sem trompete)
Louis cantou para Barry todo o tempo do mundo só para o amor, nada mais…
De tal forma musicada por Barry, a letra amorosa nos lábios de Louis faz-nos acreditar que não precisamos de mais nada depois dela. Que depois de tudo, e mesmo para além do amor, resta sempre o (amor de) Louis.
Louis Armstrong é a iluminação da penumbra, as noites acesas, as escovas do carro num compasso lento afastando as gotas da chuva, o dia a tombar e muito trânsito lá fora de regresso a casa, fachadas de prédios forradas a tijolo num bairro sossegado, a gabardina encharcada de um homem que atravessa a rua a correr e parece já enxuta quando entra num jazz-bar, um guarda-chuva a desaparecer ao fundo da rua, primeiros candeeiros a acender dentro das casas, a chuva a engrossar, carros atravessando pontes, outros cruzando com estes por baixo delas, árvores coreografando ondulação ao som de Armstrong, e algures numa das casas
(faz de conta)
Lucille e Louis com a gargalhada aberta apagando horas de aniversário num sopro que nos canta, nos toca, assim:
We have all the time in the world just for love, nothing more, nothing less, only love…

Quando Louis, muito doente já, disse a Arvell, o longo elemento da banda:
_
Arvell, há quanto tempo estás comigo?
Por todos esses anos, por ti e por todos os elementos da banda, chego ao fim. Não consigo continuar.
Mal sabia que tinha acabado de projectar o início do último e cumprido contrato de 3 semanas.
A partir dali nunca mais parou, apesar de ter morrido 7 semanas depois, com 70 anos apenas.
Porque depois de ti Only You
Only you Louis Armstrong.

Texto de Sandra Costa

*Louis Armstrong (3:15) in John Barry - 'Her Majesty's Secret Service Soundtrack'

7/08/2005

Flamenco Sketches*













Jeanloup Sieff - «Femme nue gravissant une dune».


Eis o amor e a comoção silvestre
rompendo o ardente pensamento
o começo preenchido dos instrumentos
da angústia
numa mão leve e serena
e leva nos dedos despertos
um ritmo recôndito
que esvazia os aglomerados distantes
de encontro à noite
por onde sobe a substância musical

Texto de C.S.A

* Miles Davis (9:26) in 'Kind of Blue'

7/07/2005

River Man*



















Pablo Picasso -L'Étreinte

Tu és o homem. O homem mais mulher que eu conheço. Ou seja. A pessoa.
Tu és a pessoa.
Amo-te com a força de um abraço. Reconhecemo-nos mutuamente no meio da chuva. Identificamos os nossos passos em cada edíficio que tomba atrás de nós. Sabemo-nos de cor. As mortes diárias. As vidas que fazemos. As palavras. E, todavia, é como se fosse sempre tudo pela-primeira-vez. E repetimos tudo como se fosse sempre a-primeira-vez.
Teremos oitenta anos. Continuaremos vida dentro. A conhecer-nos. A saber-nos de cor. Sempre com os braços estendidos à procura do que temos um do outro.
Podia dizer-te a palavra amigo. Mas escolho para ti a palavra música. E ainda a palavra homem. E a palavra rio. E claramente a palavra P o n t e.

Para F.

* Brad Mehldau (8:58) in ‘Live in Tokyo’

7/06/2005

Just like the day*









Para o G. - o dono destas mãos (e das minhas).


Nasceste-me. Sem ser de mim. No dia em que nasceste. Nasceste-me. Ainda olhei primeiro a tua mãe. Ainda olhei, depois, o teu pai. Estava tudo bem.
E então vi-te.
Pequenino. Pequenino. Pequenino.
A habituares-te à ideia do mundo. E toquei-te. E deixei de pensar.
Sei que desejei, quando agarrei os teus dedos. Pequeninos. Desejei que o mundo todo se alcatifasse. E que calçássemos os chinelos e vestíssemos os pijamas. E adormecessemos todos no ritmo a que respiravas. Desejei que tudo se amaciasse. Nasceste-me. Cresces-me.
E vejo como tu amacias tudo. Vejo como andas. Sinto a tua respiração. Vejo como tomas conta de mim. Como sabes sempre a razão. Das minhas coisas.
Nasceste-me. E és todas as crianças. Sobretudo as que (já não) terei. De todas as pessoas, crescidas e pequeninas, és para sempre a minha pessoa preferida. E quando respiras sei que sabes. Sabes.
Que quando te toquei no dia em que (me) nasceste ficámos com a marca um do outro. Dentro.

* Pat Metheny (4:43 ) in 'Trio 99 > 00'

7/05/2005

You Don't Know What Love Is*




Falo-te de amor. Sim, essa terra estranha. Tenho-o entranhado no meu olhar sobre o mundo, sobre as pessoas, sobre ti. Amo poucas pessoas, algumas mais do que outras. Mas, não me lixem, amar algumas pessoas chega-me. O meu mundo é pequeno e fica repleto depressa. Alguém tem de amar as que não amo. Não que me gaste, não que se gaste o amor amando mais gente. Sabemos que não é assim. Ambos reinventamos a possibilidade de (nunca) estar repletos uma e outra vez, cândidos. Mas saber que existe o amar perdidamente, que é querer tudo e aceitar tudo, torna-me cada vez mais incompetente até para amar estes poucos, como te amo a ti. Também já destilámos juntos, à luz do Jarrett, os nossos amores pelos outros. Já nos cerzimos de (des)entendimento, sentados entre o Coltrane e o Rollins, sobre se vale a pena. E, tu sabes, nós sabemos, também pela mão um do outro, que não podemos adiar o amor para outro século after having “faced each dawn with sleepless eyes”.

Para E.

Texto de F.

* Entre as muitas versões, F. escolheu a de Dinah Washington (4:06) in ‘For Those in Love’
No entanto, gosto (e F. também) de quase todas as outras, particularmente as de:
Art Blakey (6:58) in 'Art Blakey and the Jazz Messengers'

John Coltrane (5:16) in 'Coltrane for Lovers'

Sonny Rollins (6:28 ) In 'Saxophone Colossus'


    7/04/2005

    Night in Tunisia*









      Fotografias tiradas daqui


      Viajaremos longamente e semearemos flores. Pó de estrelas.
      Sobre as areias frias, a queda das estrelas acontecerá, só por ti.
      Acertaremos os alvos apagados. Acenderemos as fogueiras.
      E sobre as areias frias recusaremos o dia. E cantaremos as longas noites.
      Atravessaremos as tempestades que os nossos ventos semeiam. Sairemos transparentes.
      Iremos ao deserto. Aos desertos. Um do outro. Talvez até. Um com o outro.
      Mas, mesmo sozinhos, descobriremos os verbos. As palavras. A substância da areia.
      Moveremos as estrelas e chegaremos a tempo de caminhar nos passos um do outro.
      E todos os óasis só existirão pelos desertos. E todos os desertos existirão para que nunca me morras.

      Para C.

      * Charlie Parker (3:02) in ‘Yardbird Suite: The Ultimate Charlie Parker’

      7/03/2005

      Being There*




      Não há mais nada. Tu estás do lado destes sons, desta recordação difusa de ti. Estavas lá eu sei, mas não és os sítios, os dias, as coisas nem os sons. Estávas lá, como te dizia, de alguma forma suave, mas é tudo.

      Recordo aqueles dois dias naquela cidade à beira praia, do bar onde nos beijámos pela primeira vez [para mim, foi apenas nesse bar que te beijei pela primeira vez] e deste som, desta música. Dizem-me que eu sou as coisas e não as pessoas, que sou os sítios e não as pessoas. Lembro-me de tudo nesse fim-de-semana. Estavas lá mas não me recordo do teu nome.
      São capazes de ter razão. Eu sou apenas coisas e sítios.

      Texto e imagem de [JOS]

      *Tord Gustavsen Trio (4:11) in 'The Ground'

      7/02/2005

      My Funny Valentine*




      "My Funny Valentine", de Rogers e Hart, será apenas mais uma canção de desespero. Mas é uma canção de amor como poucas canções de amor. Por isso só podia ser uma balada. Gosto de todas as versões que conheço, vá-se lá saber porquê. A de Miles, inconfundível, e a do Chet, tão triste e indefesa. A do Sinatra. A da Nico, estranhíssima, mas também a do Costello, patética naquela voz de cana rachada. E a da Ella? E a da Sarah? Mais a do Ornette. A de Ricky Lee Jones. A do Van Morrison. Existe até uma versão de Aznavour e outra do Sammy Davis Jr.! "Love for all seasons", como diria alguém. Em todas as vozes, ou mesmo sem voz, num murmúrio, em scat, entre dentes, num assobio, existe um desejo de amor que se desprende. E que tocamos ao de leve sempre que queremos mais e não temos mais. Amor, claro. "But don't change your hair for me / Not if you care for me / Stay little valentine, stay!"

      Texto de RB

      * escolhi, de entre tantas possíveis, uma das versões de Chet Baker (2:15) in 'My Funny Valentine'

      Canadian Sunset*

















      e assim traço as múltiplas linhas onde des-melancolizo frases e ondas, ruas e portos.


      Texto e imagem de I. Mendes Ferreira


      *Wes Montgomery (5:07 ) in 'Boss Guitar'