3/30/2006

Blue Sands*












Descubro dentro de um caderno de apontamentos (e que apontava eu, nessa época, de tão diferente, do que hoje aponto?) o último malmequer amarelo de todos os malmequeres amarelos que, alguma vez, foram importantes. Reconheço-o como quem recupera a evidência do amor que teve. Dentro do caderno a carta. Sob o último malmequer amarelo de todos os malmequeres que, alguma vez, me deste. Dentro da carta o desenho. Dentro da carta o silêncio que as palavras pesadas encerram. Dentro da carta e do desenho e do silêncio das palavras. Eu. O asteroide. A estrela cadente. O castanheiro. A raposinha. Eu. E a voz com que me lias, para eu adormecer, a passagem em que a raposa explica ao pequeno princípe o que é cativar. Dentro da carta e do desenho e das palavras agora abandonadas. Um pouco tristes. Agora. A tua voz quando me interrompias a vida, para me anunciar, digamos, coisas tão subitamente urgentes como: já reparaste que os castanheiros estão em flor, meu amor? E eu não. Claro. Eu não tinha reparado na urgência com que florescem os castanheiros. Porque ninguém me havia feito notar que todos os castanheiros ao florescer era por mim que o faziam. Dentro da carta a tua voz. Raposinha. E as areias do deserto. O deserto para onde lançaste um frágil barco. E o profundo azul do mar para onde lançaste as dúvidas de me teres e não me teres. E de onde tiraste todos os malmequeres amarelos, incluindo este, que acompanharam todos os momentos em que as nossas mãos, cheias um do outro, se encheram mais. Todos os instantes em que o universo descansou nos nossos corpos. Todos os momentos em que a perfeição nos visitou. Depois de eu ter atirado o último malmequer amarelo de todos os malmequeres amarelos que, alguma vez, me importaram, para dentro do caderno onde apontava a respiração. Assombraste-me outra vez com a vastidão do teu amor. Apesar do malmequer seco. Dentro dos apontamentos. Acho que nunca te disse obrigada. Nunca fechei o caderno. Nunca rasguei a carta. Nem o desenho. Nunca acabei de te esquecer. E hoje. Faço-o. Hoje regresso ao deserto. De outras areias. Regresso ao profundo azul. De um outro mar.

* Chico Hamilton Quintet (6:30) in 'The West Coast Jazz Box, an Anthology of California Jazz'

12 comments:

Anonymous said...

E o mar, na mais silenciosa das suas intimas dimensões, contemplou a silhueta daquela misteriosa mulher deixando atrás de si pétalas de malmequeres. Os malmequeres gravaram sua semente no calor das areias. O mar alimentou-os e deu-lhes vida.E assim nasceu o verão num recanto memorável daquela praia...

Unknown said...

E foi então que apareceu a raposa: - Boa dia, disse a raposa. - Bom dia, respondeu polidamente o principezinho, que se voltou, mas não viu nada. - Eu estou aqui, disse a voz, debaixo da macieira... - Quem és tu? perguntou o principezinho. Tu és bem bonita... - Sou uma raposa, disse a raposa. - Vem brincar comigo, propôs o principezinho. Estou tão triste... - Eu não posso brincar contigo, disse a raposa. Não me cativaram ainda. - Ah! desculpa, disse o principezinho. Após uma reflexão, acrescentou: - Que quer dizer "cativar"? - Tu não és daqui, disse a raposa. Que procuras? - Procuro os homens, disse o principezinho. Que quer dizer "cativar"? - Os homens, disse a raposa, têm fuzis e caçam. É bem incômodo! Criam galinhas também. É a única coisa interessante que fazem. Tu procuras galinhas? - Não, disse o principezinho. Eu procuro amigos. Que quer dizer "cativar"? - É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa "criar laços..." - Criar laços? - Exatamente, disse a raposa. Tu não és para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo... - Começo a compreender, disse o principezinho. Existe uma flor... eu creio que ela me cativou...

Elisa said...

Exactamente Blah. Era justamente essa a passagem. :-)

nuno said...

olá,
seria possivel adicionares um link para o meu blog) (que eu farei outro para o teu)
gostaria que começasse a ser visitado
obg

Elisa said...

Olá Nuno
Obrigada pela visita. Tentei ver o teu blog, mas não o encontro ainda. Aparece apenas o teu perfil... logo que ele apareça, visitá-lo-ei.

JPN said...

que saudades que eu tinha destes teus textos. e que me visitasses, (chuif). ninguém como tu lia os meus textos de quilómetro e meio...(lol). ora, passei do choro ao riso em duas linhas...boa!!!

Elisa said...

JPN
Mas eu... eu visito-te... diria religiosamente se fosse crente... todos os dias. E leio os teus textos pequenos. E os grandes. E admito que me maravilho sempre.
Bjo

João Oliveira Santos said...

Tu disseste-me que eramos felizes, não foi? Quando casámos e mesmo agora, não foi? Bem me parecia,
Beijos

Elisa said...

J.
Então não éramos felizes? Tão felizes como dois inconscientes podem ser. Pareceu-te bem. Continuamos inconscientes. Logo. Felizes.
Beijos

Just a Girl said...

Nao duvido que virei espreitar mais vezes...Continua!

JPN said...

agora fiquei envergonhado por ser tão piegas...lol...obrigado 'miga.

Elisa said...

Acs
Obrigada. Volta, sim.