7/31/2006

Light in the Morning (Many Thousand Gone)*










Salvador Dalí - Face of the War


Posso chamar-me, hoje, Hassan, ter oito anos e estar morto. Amanhã. Ou mesmo agora. Não ver já a luz da manhã. Amanhã. Ouvir, hoje, apenas os gemidos dos que morrem ao meu lado, debaixo das pedras. Posso hoje chamar-me Hassan e ser apenas uma criança. Estar morto. Agora mesmo. Ou amanhã. Quem se importa que eu tenha oito anos, me chame Hassan e amanhã já não tenha olhos para ver a luz da manhã?

* Marty Ehrlich Sextet (9:56) in 'News on the Rail '

7/20/2006

Strange Fruit*














Maya Kulenovic - Great War**

«Esvaziámos os lugares da matança, retirando-lhes o peso dos nossos mortos»
E os nossos mortos serão sempre mais pesados que os mortos dos outros. Por isso esvaziamos os lugares da guerra do seu peso. Em troca deixamos frutos estranhos, carne queimada e uma colheita de horrores. E não temos vergonha. Continuamos a não ter vergonha. O vento varre-a juntamente com os corpos de centenas de homens, mulheres e crianças que tiveram a pouca sorte de não serem 'nossos'.

* Billie Holiday (3:05) in 'Lady Sings the Blues: The Billie Holiday Story, Vol. 4'

«Southern trees bear a strange fruit,
Blood on the leaves and blood at the root,
Black body swinging in the Southern breeze,
Strange fruit hanging from the poplar trees.

Pastoral scene of the gallant South,
The bulging eyes and the twisted mouth,
Scent of magnolia sweet and fresh,
And the sudden smell of burning flesh!

Here is a fruit for the crows to pluck,
For the rain to gather, for the wind to suck,
For the sun to rot, for a tree to drop,

Here is a strange and bitter crop» **

**Outros contextos mas, no essencial, pouco diversos.

7/16/2006

Mediolistic*














Henri Matisse - Icarus - quadro VIII da série Jazz

Afinal. O que importa é a música. O jazz. O azul. Noite. As estrelas. Dançar, mesmo que se não saiba. E o coração no lugar certo. Não desfeito. Não nas mãos. Mas dentro do peito. O coração que é apenas o coração. Não uma qualquer metáfora para devaneios da cabeça. O coração que faz a sua parte. Bombear o sangue. Bater para viver o que importa. A música. O jazz. A noite. O azul. As estrelas. E as palavras.

*Al Cohn & Zoot Sims (3:29) in 'From A to Z'

7/11/2006

Feeling Good*















René Magritte - L'Art de Vivre

O sol na cabeça. Ter o sol. Na cabeça. Ou a cabeça no sol. De qualquer modo, viajar muito alto. Muito longe. Na cabeça. Com o sol. Sinto-me tão bem. Tão viva. Tão despojada das minhas costumeiras angústias que me apetece gostar do sol. Ter a cabeça no sol. Ou o sol na cabeça. Até queimar o passado todo. O passado que está morto. Que já passou. Que já não interessa. Só o sol. E a viagem. O momento da viagem. Ou cada momento da viagem. Muito alto. Muito longe. Interessa. Não o passado. Ou o futuro. Talvez nem o presente interesse. Apenas a sensação de estar viva. De escrever ao sol. Na cabeça.

* Nina Simone (2:54) in 'Feeling Good'

7/07/2006

Alegria Callada*














Sebastião Salgado - San Juan, 1979


Hoje tenho sete anos. Ainda sinto as mãos da minha mãe a entrançar os meus cabelos. Hoje tenho sete anos e borboletas na barriga. Borboletas iguais, nas cores, aos laços que a minha mãe me põe na ponta das tranças. Hoje tenho sete anos e tenho pressa. As mãos da minha mãe nos cabelos e pressa. De te encontrar sentado contra o tempo. No jardim em frente aos prédios. Na praceta da minha infância. Tenho sete anos e saio de casa a correr. Tenho sete anos e posso brincar na rua. Tenho sete anos e uma cara perfeita. Como os anjos. Tenho sete anos e a minha cara ainda não partiu numa direcção indistinta. Saio de casa a correr. Para o jardim em frente aos prédios. Páro. Com um pé atrás do outro. A sentir as asas das borboletas às voltas na barriga. Páro. Porque te vejo sentado no balouço, com o saco dos berlindes a cair-te da mão direita. Avanço um bocadinho. Avanço tudo, com a minha cara perfeita como a dos anjos. Tenho sete anos e tenho pressa. Pergunto-te - e as asas já não voam, golpeiam - queres brincar comigo? #

* Chano Domínguez (6:59) in 'Iman'

# texto publicado antes, sem banda sonora e com o título Asas e Golpes, no blog entretanto extinto - Pilar da Ponte de Tédio