11/29/2005

Right Before*










Anselm Kiefer - Red Sea

escrevo. te. com letras pequenas. sempre. para não fazer muito barulho. escrevo-te enquanto sinto um mar. a invadir as minhas mãos. da cor que não gostas. mas é vermelho o mar. que sinto. mesmo que não gostes da cor. não há outra cor para o que sinto. este mar. tanto. invadir. me. as mãos. escrevo. te. baixinho. para que não acordes. como na música. não grito. não falo. não te olho. escrevo. te. apenas. antes. antes. de. apenas. gosto de te saber aí. por onde andas. nas ondas. gosto de saber que vou contigo. mesmo com a errada cor que assumem as pessoas que entram, talvez tarde, talvez cedo. demais. ou na exacta hora. gosto de saber que fazes essas perguntas. e gosto de saber que sabes que eu também faço as perguntas. essas. mesmo antes de. escrevo baixinho. não sou capaz de te dizer nada. alto. ou nada. mesmo. não sou capaz de pensar em ti sem ser baixinho. e devagar. como a invasão do mar. quando está calmo. mas avança. desta ou de qualquer outra. cor. as mãos não pensam. tenho medo de te acordar do teu próprio mar. tenho medo de pensar com qualquer outra coisa que não. sejam. as mãos. não sei se serão as mesmas. as mãos. e tenho medo. como eu. sabes. conheces esta sensação de antes de. antes que. antes que aconteça. antes que seja. podia ficar assim. para sempre. com as ondas. a invadir-me. as mãos. e depois deixá-las tomar conta do resto. a boca. os olhos. o nariz. os braços. as pernas. o sexo. os cabelos. quantas vezes te deixaste ir. assim. quantas. e no entanto. é sempre a primeira vez que o mar te invade. assim. docemente. longamente. mesmo antes. de... escrevo-te. baixinho. devagar. como quem dorme. como dormimos. mesmo depois. de. tenho medo. que já estejas acordado. e seja tudo. verdade. até o mar. até a cor do mar.

* David Binney (9:09) in 'Bastion of Sanity'

11/21/2005

Solitaire*













E. Munch - Puberty

Estamos sempre sozinhos, não é? E nus, não é? Por mais que enfeitemos o corpo e os dias com vestes e artes de disfarce. Estamos sempre sozinhos, não é? Padecendo dessa solidão assustada que responde à pergunta que nem sempre formulamos alto, mas que nos acompanha os ossos e a carne e os gestos: quem sou eu? Mesmo vestidos do que queremos ser, somos sempre nós, sozinhos, assustados, frágeis, pobres, evidentes e nus!

* Uri Caine (5:22) in 'Solitaire'

11/09/2005

Soul is Free*












Guy Le Querrec, 1997, CD 'Suite Africaine' booklet

Podia dizer(te) coisas como 'a minha alma partiu-se como um vaso vazio'#. Mas não. Não tenho alma. E se a tivesse não se partiria como um vazio vaso. Não se partiria. Pronto. Não se partiria porque seria livre. E uma alma livre não parte. Apenas vacila. Mas não tenho alma. E se a tivesse, provavelmente não seria livre. Sou livre porque não tenho alma que se parta ao toque, vazia, como um vaso. Porque não tenho alma. Sou preguiçosa demais para ter alma. Mas se a tivesse, estaria agora a pensar como torná-la livre. Assim sou livre e estou livre do trabalho que ter uma alma me daria.

*Aldo Romano, Louis Sclavis, Henri Texier (5:17) in 'Suite Africaine'

# frase do poema 'Apontamento' de Álvaro de Campos