10/30/2006

The Mourning of a Star*


















Gerhard Richter - Dark

Somos da espécie das estrelas. Cinco pontas. Habitualmente. Nenhuma por onde nos peguem. Afinal. Somos da espécie mesma desses elementos. Mortos. Emitimos brilho. Apenas. Após a invasão da profundíssima escuridão. Dói-nos a dor das estrelas. É a nossa. Dói-nos termos perdido a luz. Não termos tacteado a poeira. Não nos termos encontrado nos grandes buracos negros que trazemos (de) dentro. Não termos caminhado em constelações sentindo que aí (nos) pertencíamos. Termo-nos perdido nas sinuosas ruínas do que somos. Não nos termos reconhecido. Apesar dos milhares de anos luz a que nos vemos.

* Keith Jarrett (9:24) in 'The Mourning of a Star'

10/26/2006

Here's That Rainy Day*


















Jon Schueler - Rain

Vem com a chuva um nome imperfeito. Perfeito se procuras aquela nota pequena. Quase inaudível. Aquele rumor pequeno que fazem as saias das mulheres, com o movimento. Perfeito se procuras aquela pequena linha. Quase invisível. Aquela pequena fronteira que separa um homem de outro homem, com a guerra. Perfeito nome que vem, imperfeito, com a chuva, se o que procuras é aquela palavra pequena. Quase inaudível. Aquelas letras que se juntam, para dar aos dias o teu sentido. Uma palavra útil. Um nome. Aquele que te abre. O único que reconheces. No fim. Um nome fácil de dizer. Um nome para a (nossa) morte. O (teu) nome. Que não sei.

* Martial Solal & Dave Douglas (3:18) in 'Rue de Seine'

10/24/2006

Bird Calls*

















Joan Miró - Mujer, Pajaro y Estrella


Há demasiadas coisas que (se) explicam (com) um sorriso. Gostar de gaivotas. Ter as gaivotas rasantes às janelas. Mesmo as imaginárias. Ter o ouvido atento. À escuta. Do sorriso dos pássaros. Reconhecer as palavras-hélices que circulam entre nós. E que há palavras imensas que esperam por nós**. Há demasiadas coisas que só um sorriso pode explicar. O apelo dos pássaros. A abundante cor no que se sente. A cor que cria a luz. A cor que impele a rapariga que gosta de gaivotas ao dever falar. E a nós a ouvir. Atentamente.

* Charles Mingus (6:17) in 'Mingus Ah Um'

** Mário Cesariny - You are Welcome to Elsinore

10/18/2006

Speak Low*






Henri Matisse - La Nageuse dans l'Aquarium, quadro XII da série Jazz


Fala-me baixo. De dentro da caixa. No meio da água. Que o sangue mancha. Não te ouço. Fala-me. Mais. Baixo. Mas não deixes de falar. Como se eu te pudesse ouvir. Dentro do sangue. Que a água mancha. Sou um mergulhador solitário. Como todos. As profundezas do sangue deixam-nos sós. Tão sós como quando estamos fora da água. Fala-me baixo. E devagar. Como se pudesses estancar a água. Como se pudesses transferir todo o sangue que foi gasto a viver muito devagar. Com muita pressa. Fala-me baixo. Enquanto eu mergulho mais. Enquanto dou umas voltas mais dentro da caixa. Como se fosse à vida. Enquanto subo para respirar. Fora do sangue. Enquanto abro a boca, para te ouvir. Falar(me) baixo. Antes de regressar à água que o sangue mancha. Dentro da caixa. Que. Às vezes. Se parece com a vida.

* Chano Domínguez (6:18) in 'Con Alma'

10/13/2006

My Song*

















W. Kandinsky - Contrasting Sounds


Podia ter apenas uma canção. Uma que soubesse. Cantar. Podia ter apenas uma vida. Uma que soubesse. Contar. Podia ter apenas um amor. Um que soubesse. Amar. Podia ter apenas um nome. Com que me pudessem. Chamar. Podia ter apenas um desejo. Um que me fizesse. Correr. Podia ser apenas. Eu. Dentro de mim.

* Pat Metheny (4:22) in 'One Quiet Night'

10/04/2006

Evidence*











Jackson Pollock - Convergence

O resto é sempre muito. Demasiado. Parecido. Quase sempre. E chorar. Limpa. Ou. Apenas. Suja mais. Pensamo-nos diferentes. Demasiado. Mas pouco há que nos distinga. O resto. É mesmo. O mesmo. Demasiado igual. Até o choro que nos limpa. Até o choro que nos suja. Aquilo que separa as pessoas é. Exactamente. O que as torna iguais. O que nos limpa. O que nos suja. Por vezes é. Exactamente. O mesmo. São as grandes crateras. As quedas dos pequenos meteoritos. Os movimentos. Tão pequenos. Da terra. São os desertos que nos crescem. Dentro. Esses grandes vazios. Impossíveis de cruzar.

* Thelonious Monk Quartet & John Coltrane (4:41) in 'Thelonious Monk Quartet with John Coltrane at Carnegie Hall'

10/01/2006

The Falling Rains Of Life*













Paula Rego - sem título, da série sobre o aborto



Paula Rego - triptico sem título, da série sobre o aborto


É capaz que ainda alguém acredite que a interrupção voluntária da gravidez, porque é voluntária, alguma vez foi feita com vontade por alguma mulher.
É capaz que ainda alguém acredite que abortar é um acto irreflectido e fácil, para quem toma a decisão de o fazer.
É capaz que ainda alguém acredite que o direito a uma vida sem condições se deve sobrepôr ao direito a uma vida com dignidade.
É capaz que ainda alguém acredite que o corpo de uma mulher não é propriedade sua.
É capaz que ainda alguém acredite que os milhares de mulheres que, todos os anos, abortam clandestinamente em Portugal, deviam ser condenadas.
É capaz que ainda alguém acredite que os milhares de mulheres que, todos os anos, morrem em consequência de um aborto clandestino, não mereciam outra sorte.
É capaz.
É capaz que, depois do próximo dia 19 de Outubro, a hipocrisia se mantenha e continue, como quase tudo o resto, a envergonhar-me de ser portuguesa.
É capaz.

*Marty Ehrlich (5:15) in 'Song'