1/30/2006

When You're in My Arms*










Robert Doisneau

Não acontece mais nada. Deixa-te ficar. Não quero que aconteça. Mesmo. Mais. Nada. Só isto. Os teus braços. O universo todo. Aqui. E posso fingir que morri. Ou que continuo viva. Deixa-te ficar. Como se fosse possível não acontecer nunca mais. Nada. Depois.

*John Griffin & Martial Solal (6:42) in 'In and Out'

1/23/2006

Up Against the Wall*











Não. Não. Este não é o presidente que escolhi. Recupero o folêgo. Não lamento as expectativas. Escondo o desalento. Respiro fundo o que posso respirar. Cerro os dentes. Encerro a consciência da dor. Lembro-me como era. Antes. Eu. Recordo. Me. Que a democracia é (também) isto. E escolho ficar de pé. Contra este muro. Afasto o embaraço de ser portuguesa hoje. Ou sempre. Como possível. E escolho. Ficar. De pé. Animadamente. Como a música. De pé. E contra.

* John Coltrane (3:19) in 'Impressions'

1/16/2006

Song For Sarah*












É nas tuas mãos que encontro o que não perdi. E o que não peço. Como se as minhas fossem. Estou suspensa nas tuas mãos. Como nas minhas. Estou suspensa na noite. E grito. Até ficar com os nós dos dedos brancos. Grito na noite. Suspensa nas tuas mãos onde (me) encontro. Sem estar perdida. E, todavia, achada que estou. É das tuas mãos. Que eu preciso. Agora.

* Tomasz Stanko Quartet (5:33) in ‘Suspended Night’

1/11/2006

For All You Are*



Passam diante de mim estas gaivotas. E o que tenho para te dizer... é o absurdo de tudo isto. Absurda a água que vejo da janela. O dia cinzento. Esta água cinzenta que me aproxima do mar. Como a ti te aproximava. Embora eu, sem a bicicleta em que voavas. Com as gaivotas. Nestas tardes assim. Paradas.
Estreito o convívio com as gaivotas, nestes dias. Sem ti. Nestes longuíssimos dias. Em que me entretenho. A enganar a tua morte. Ou a minha vida. O que é o mesmo. O treino diário a que me obriga a evidência da tua morte faz-me tão diferente do que fui quando ainda estavas vivo e agarravas a bicicleta
(era vermelha a tua bicicleta. Dei a tua bicicleta vermelha. E às vezes vejo o teu pai passar montado nela. Agarrado a ela como se agarraria a ti se soubesse que um dia a tua bicicleta vermelha ficaria para trás, na precipitação da tua morte). Absurdo este reparar no movimento das asas das gaivotas sobre as águas cinzentas da ria. Num dia assim. Cinzento e murcho. Como as pétalas das flores que raramente me davas. Morrem depressa as flores. Como tu. Guardaste toda a fragilidade das pétalas para o dia em que, absurdamente, deixaste de agarrar a bicicleta
(era vermelha e ainda é).
Partias com tanto vento que, ao ver-te pedalar, não se via em ti a morte, mas a vida.
E estas gaivotas rasantes a estas janelas tão grandes onde, às vezes, lá em baixo, vinhas chamar-me.
Amor.
E eu escancarava a janela e perguntava-te se querias subir tu ou se descia eu. Escolhe tu. Dizias. E a bicicleta
(vermelha)
agarrada à tua mão. E eu escolhia. E às vezes era eu que descia e outras eras tu que subias. Dessas vezes, deixavas a bicicleta
(que sem ti, era sempre vermelha, mas não tinha asas, parecia uma gaivota murcha) encostada à porta do sítio onde tenho esta janela grande, com a ria ao fundo e as gaivotas rasantes. Deste sítio em que vou perdendo os dias. Todos os dias em que não estive contigo. E não ganhei o teu sorriso. Ou, simplesmente, a tua vida. Deste sítio onde estou agora. Tão diferente. Deste sítio de onde não quero sair porque me parece que hás-de aparecer lá em baixo, com a bicicleta vermelha, que agora roubaste ao teu pai, para me chamar.
Amor.
Não sei o que dizer-te desta diferença que sinto no modo como reparo agora nas coisas todas só para perceber que não existes. Que já não nos sentamos os dois, nas tardes tão grandes de domingo, a ler os livros que me davas e que ficaram para sempre. Os livros que eram as flores que não gostavas de me dar. Porque morriam para sempre. Como tu.
Agora.
Não sei o que dizer-te a cada vez que abro os livros que eram as flores e de dentro deles salta a tua bicicleta e tu todo. Tu rodeado desta cinza das asas das gaivotas. E eu, aceno-te de fora. Chamo-te.
Amor.
Tenho tentado reparar nas coisas como se existisses ainda e pedalasses em mim, como o sangue. Na bicicleta vermelha. Mas não sei para onde me escorreu a paciência. E para onde foram aquelas tardes de domingo.
Tenho tentado chamar amor, lá em baixo, a ver se me apareço cá de cima.Mas a pessoa que me aparece é sempre tão diferente de mim quando era eu que te aparecia. Nessa altura não reparava como é triste o movimento das asas das gaivotas. Nessa altura as gaivotas vestiam-se de vermelho e eram a tua bicicleta. Ou o meu sangue.
Tenho tentado chamar amor a tanta gente, em toda a parte. Aqui neste sítio. Noutro sítio. Mas é sempre a bicicleta que salta do silêncio em que me vejo, depois, mal acabo de pronunciar o amor.
(A bicicleta. Amor).
E passam diante de mim estas gaivotas.
E, na verdade, 'o que eu queria dizer-te nesta tarde nada tem em comum com as gaivotas'.

(antes publicado mais ou menos assim, sem a banda sonora, em A Vida Segue Dentro de Momentos)
* Dave Holland Quintet (8:23) in 'Not For Nothin' '

1/09/2006

Still Gotta Thing For You*













Edward Munch - Kiss


Percorrer. Te. O desejo. Nasce de um dedo. Ou de uma voz. Fala. Sento-me outra vez. Nos teus joelhos. Repetir. Uma língua de água. A fome. Como. (Não) sei o que (me) fizeste. Quando. A sede. Bebo. Escuto os teus dedos. A minha pele comove-se. Não falo. Fá-lo. Ainda. Percorre. Me. Outra vez. Mata. A fome. A sede. Ou só a mim.

* Carla Cook (6:01) in 'Simply Natural'

1/06/2006

August Moon*



Enquanto o verão não chega,
aconchega-te na fogueira do meu colo.
Vamos dançar luas de Agosto
pelas divisões da casa, pega na solidão
e atira-a janela fora contra o ar pesado
das ruas desertas, nubladas, chuvosas
deste nosso misterioso e insuportável
calendário. Aumenta o volume
e dança, põe a sombra dos objectos a dançar,
mete-te dentro da sombra dos objectos
e dança, dança sobre a luz artificial
que dá graças a todos os insectos
pouco mais do que dançantes.
Eu tenho luas de Agosto dentro de mim
no Inverno jacente, não te quero
de sorrisos mortos e mãos vazias.
Mesmo gelado, de ossos quebrados,
exausto, eu quero-te a dançar com os braços
envoltos na fogueira do meu colo.

Texto de Juraan Vink


* Benny Carter (4:26) in ‘Harlem Renaissance’

1/02/2006

From This Moment On*













Robert Doisneau


Nada mais triste. Um carrossel à chuva. Eu hoje sou o carrossel molhado. Que girou sob o sol que não havia. Mas havia. Que se deixou ficar. Parado. Ferrugento. Chiando com o vento. À chuva. Sabendo que não houve nunca sol. Mas houve. Que só a chuva é real. Mas não. Neste decisivo momento como são todos podia fingir que canto. Que não me importo de estar ao sol ou à chuva. Que não sou esta imagem de desalento ou estas notas que parecem gotas. Mas não. Nada mais triste. Não conseguir fingir. Que canto. Ou que enlouqueço.

* Brad Mehldau (7:55) in 'Live in Tokyo'