10/28/2005

The Sidewinder*





Uma sidewinder. Fotografia tirada daqui

Deixei uma vida atrás de ti. Nas tuas sombras. Nos teus percursos. Seria a vida que viveria se os caminhos se traçassem a direito. Se os instantes não fossem decisivos. Deixei uma vida escondida nos teus cabelos. Outra aberta nas tuas mãos. Outra que só os teus olhos perceberam. Não sei o que vais fazer com todas essas formas de vida que poderiam ter sido, se os caminhos se percorressem a direito. Se houvesse um sentido qualquer para as coisas. Se houvesse um destino em que acreditar. Eu vou serpentear pelas montanhas quietas. Ter a sensação de que nos teus cabelos, nas tuas mãos e nos teus olhos, estive sempre sozinha. Que sempre fiz o que me apeteceu com a vida que deixei atrás de ti. E adiante.

* Lee Morgan (10:16) in ‘The Sidewinder’

10/26/2005

Resignation*













De nós, se houve nós, não há memória em nós. Mas o mais certo é o nós nunca ter sido. Um nós. Ou um de nós. Um e um. Não dois. Não nós. Apenas me lembro disto. Disseste: amo-te. Depois deste-me um murro nos dentes. E eu fiquei com cicatrizes. Com pontos. Com nós.

* Brad Mehldau (8:39) in ‘The Art of the Trio, Volume 5: Progression’ (Disco 2)

10/24/2005

Don't Let The Sun Catch You Cryin' *















Praga, Jardim, na Ilha de Kampa, 2/9/2005


Finge. Finge que és verde. Finge. Que és de pedra. Não passaste todos estes anos a aprender como se faz? Fingir. Agora já sabes. És verde. És de pedra. Não sentes nada. Como a pedra. O sol apanha-te a curva das orelhas. Ilumina o teu pequeno sinal no nariz. O sol apanha-te. Finge. Que és de pedra. Não sentes. O sol apanha-te a curva das ancas. Os braços. A coluna. E não vergas. És de pedra. Não sentes. Não choras. Finge que não choras. Que o sol jamais te apanhará uma lágrima verde. Só a curva da cintura. Só os fios de pedra dos cabelos. Não olhes para trás. Porque. Já és de pedra. Não chores. De nada adianta. Apanha o sol. Olha em frente. Sossega. Mente. Esquece.

Shirley Horn (5:58) in 'You Won't Forget Me'

10/20/2005

Conference of the Birds*













Pois. Eu sei. As gaivotas abeiram-se das janelas. E gritam. Gostava de gritar assim. Contra o que me apetecesse. Ou contra ti. As pessoas são como pássaros. Se quisermos… gaivotas. Abeiram-se das janelas. Voltam para trás. Descrevem círculos imperfeitos. Tudo começa com uma asa. Devagar. Depois tudo entra em decomposição. Penas. As gaivotas acertam os círculos do voo. As pessoas não. Complicam. Descomplicam. Fazem tudo depressa demais. Não voltam atrás. Ou se voltam trazem sacos cheios de mágoas. Não sabem voar com eles. Nem atirá-los pela janela a que se abeiram as gaivotas. Não quero dizer adeus. Porque não sou capaz. Mas não quero continuar este imperfeito voo. O tempo acabou. Um dia pode ser que conferenciemos. Devagar. Agora não. Doem-me as asas. Doem-me os ossos. Tenho as janelas fechadas. E tu nem sequer pedes desculpa. Por me teres partido as asas e os ossos. Por me teres feito abrir janelas, fechadas, sabendo que haverias de me obrigar a fechá-las outra vez. Por teres voado até aqui. Sem consequências.

* Dave Holland Quartet (com Barry Altschul; Sam Rivers e Anthony Braxton) (4:42) in ‘Conference of the Birds’